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Maria das Palavras

A blogger menos in do pedaço, a destruir mitos urbanos desde 1986. Prazer.

17
Set15

Pedidos simples

Maria das Palavras

Pedidos Simples | Maria das Palavras - Foto Pixabay.com

 

Encolhi-me mais no sofá a agarrar os joelhos junto ao peito. Ele a gritar comigo em resposta à minha tristeza. Que não sabia o que queria, que exigia muito dele, que ele não adivinha. 

Mata-se a trabalhar pela família. Oiço-o dizer isto muitas vezes. E não tem um agradecimento em troca. 

Há três anos decidimos que seria melhor assim, quando nasceu o Miguel. Eu dedicar-me-ia a tempo inteiro aos nossos filhos e à casa. Os avós estavam longe, não podiam ajudar. O dinheiro para a creche dos dois seria mais dispendioso do que eu recebia de ordenado, num emprego que era um beco escuro de desapontamentos. Foi uma decisão comum, por toda a família. Que me custou parte da independência e quase todas as aspirações. 
Ele esqueceu-se disso: que foi uma decisão comum, por toda a família. Eu nunca cobrei a minha parte. Ele cobrava-me muitas vezes o sacrifício dele.

 

Nesse dia, a Teresinha e o Miguel já dormiam. Eu, que me sabia essencialmente feliz, tinha algumas frustrações guardadas no peito. Era um daqueles dias em que só conseguimos ver nevoeiro. Eu estava só com ele, a ver um filme qualquer no sofá. O meu companheiro de sempre e para sempre. Sentia-me segura. Abandonei-me a ele e comecei a chorar devagarinho. 

Levantou-se a um tempo, como se a minha mágoa fosse chuva ácida. Sem que o atacasse, começou a defender-se a perguntar-me o que queria eu.
Balbuciei um "Precisava que..." mas algures entre os soluços e a reação dele perdi a habilidade de juntar letras e proferir sons. 

Mais uma vez não sabia o que eu queria. Queria que desembuchasse. Tremi com aquela palavra feia. 
"Pede-me o que quiseres, mas não me faças isto", atirava ele. Ao fim de tantos anos, aquela era a única coisa que ele ainda não tinha aprendido sobre mim. Perguntou-me sem tréguas, minutos a fio, o que eu queria e, sem outra resposta da minha parte que não o silêncio de olhos baixos, desistiu. 

Eu sozinha, quieta, chorosa, desesperada pelo seu amor. Ele inflamado, distante, frenético, deseperado porque me ama.
"Não sei o que queres", repetiu saindo da sala.

 

 

Queria um abraço, sem ter de o pedir.

 

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19
Ago15

O amor está nos detalhes #23

Maria das Palavras

Fada dos dentes - Costume company | http://rubies.com/item/?n=17768

Fiz um esforço hercúleo para me manter acordada até ele chegar a casa depois do trabalho (era só à meia-noite, mas eu a partir praí das 21h já passo de Cinderela a abóbora). Conversamos de cabeça encostada nas almofadas enquanto ele me passa as mãos pelo cabelo e ele pergunta - completamente off-topic:

 

Ele: Quando eras pequena fazias aquilo de pôr os dentes que caíam debaixo da almofada para esperar a fada dos dentes?

Eu (sobrancelha erguida): Não me conheces já o suficiente para saber que nunca acreditei no Pai Natal e seus duendes?

Ele: Mas sabes o que é?

Eu: Claro...deixas o dente debaixo da almofada, ela troca por uma nota durante a noite.

Ele: Tem de ser dinheiro? (a olhar para a minha almofada)

Eu (já desconfiada): Tem...e uma nota das gordas.

Ele: E se for uma coisa que se compra com dinheiro?

 

Viro a almofada. Não deixei nenhum dente (graçádeus), mas tinha um livro. 

Era menina para dormir a noite toda sem dar por nada. Não dou para princesa da ervilha, aparentemente. Mas mesmo sem ser princesa, sou uma mimada. Pela minha fada dos dentes pessoal. 

 

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28
Jul15

À Janela

Maria das Palavras

Pixabay free images | Public Domain - Janela / Window

  

Ali estava ela, na janela do 5ºB, a olhar para o mundo que se estendia à sua frente a partir de Lisboa. Que pequena que era. Que sozinha que estava. 
Toda a gente tinha alguém. Estavam de férias com as caras-metades ou aquele grupo de amigos inseparável. Toda a gente tinha um programa mais interessante do que estar à janela naquele domingo ameno. Só ela é que não.

Então tinha tempo para maldizer a sua vida cinzenta. Mesmo que em todos os dias da semana,a todos os que se cruzassem com ela, mostrasse uma montra colorida, em forma de sorriso. O "como estás" responde-se automaticamente com "bem", o "está tudo bem" responde-se automaticamente com "sim". E de resposta correta (mas incompleta) em resposta correta (mas incompleta) se constrói uma fachada pintada de fresco em cima de paredes de cimento áspero. 

Não é que não fosse genericamente feliz, que não tivesse amigos do peito, uma família quente de ternura. Mas o que lhes diria? Que não, não estava bem. Que sentia que todos eram mais do que ela, mesmo que ela soubesse que era tanto como os outros? E que importância tinha isso ao pé de quem não tem saúde ou comida suficiente todos os dias? 

E era uma pena que estivesse ali sozinha, sabendo que tinha tanto para dar. Podia ser engraçada, espirituosa, inteligente, uma de cada vez ou todas ao mesmo tempo. Era um desperdício que tivesse aquele cabelo sedoso, que entraçava sozinha, e  ninguém que o percorresse com os dedos, a acompanhar com uma declaração de amor.

O mundo tão grande e ela tão pequena. Toda a gente acompanhada e ela sozinha. Com um suspiro, fartou-se de estar a janela a pensar no que não tinha e virou-se soltando alguma folhas secas da planta que mantinha no parapeito da janela, sem regar.

 

No 3ºB estava o Eduardo à janela. Viu as folhas secas a cair à sua frente, sem  interromper os seus pensamentos. A sua mágoa por ser o único a estar sozinho no mundo.

 

No outro lado da rua a Sofia pensava exatamente o mesmo. Como o Tomás, em Viseu. A Catarina, em Évora. O Pierre, em Lyon. A Johanna, na Suécia. O Matthew, em Los Angeles. O Marcos, no Brasil. 
 

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03
Jun15

O conto de não-retorno

Maria das Palavras

Respirou fundo. Tinha aquela sensação no peito que não se explica. Como se alguém lhe sugasse o ar e o sangue e lhe travasse e acelerasse o tambor do coração a seu gosto. 
As caixas amontoadas ao canto. Nem se podia dizer que estivesse tudo fora do sítio porque ainda não tinham um onde pertencer. Esse seria o trabalho dela naqueles dias que se seguiam à mudança. Definir sítios para as suas coisas. Já que não encontrava um sítio onde coubesse ela.

 

Mentira. Cabia no colo dele. Era essa a sua casa. Mas o colo dele ja não lhe pertencia.
A sensação que lhe esvaziava o peito não tinha a ver com a desorganização geral - não desta vez. Era um latejar da traição que lhe ardia no corpo há mais de uma semana.

Tinha sido logo no primeiro encontro que lhe havia anunciado que jamais perdoaria uma traição. Tinha visto a sua mãe fingir que não chorava vezes demais. Nunca o toleraria na sua própria vida. Avisou-o. Não haveria retorno.


Começou por desencaixotar os livros, já que a mobília estava no sítio e não suportava ver estantes vazias. Abriu sem querer o exemplar d'O Velho e o Mar que ele lhe tinha oferecido e leu a dedicatória. Ele juntava sempre uma dedicatória aos livros que oferecia. 


Que tenhamos a mesma perseverança do velho, para que contra todas as marés revoltas e à boleia de todos os bons ventos, sejamos felizes para sempre. Sem espinhas.


Quando se conheceram, num esforço para impressionar aquele homem lindo por quem todas as suas colegas suspiravam, disse-lhe que sim, claro! Conhecia Hemingway. E coincidentemente o livro favorito dela era o mesmo dele: O Velho e o Mar. Era mentira, como ele provou em três tiradas. Ela desconhecia a história do velho pescador que se lançava todos os dias ao mar, muitos dias seguidos, sem resultados. Que um dia pescou o maior peixe jamais visto, mas teve de lutar para o puxar para o barco, depois contra tubarões para o manter...que chegou a terra sem nada senão a espinha gigante. Que ainda assim foi cumprimentado pelos da terra. Não pela conquista, que já nada sobrava. Mas pela perseverança.


Teria ela de ter perseverança? Lutar contra a catástrofe que se colou ao seu casamento? Haveria lugar para o perdão?
Fechou o livro e arremessou-o contra o canto da sala. 

Ele tinha querido perdoá-la. Foi ela que não se perdoou.

 

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22
Mai15

Sete anos de Azar IV

Maria das Palavras

Não são os Lusíadas, nem é o mistério do livro que lia o leitor, sequer tão engraçado como o homem que mordeu o cão, mas é uma história ligeirinha sobre vidas comuns da lavra aqui da Maria. Para que não se fartou no primeiro capítulo, não bocejou a meio do segundo, não adormeceu logo no início do terceiro e por via de algum distúrbio de personalidade quer continuar a ler, eis o quarto capítulo, lá no blog d'Arrumadinha.

 

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21
Abr15

Sete anos de Azar III

Maria das Palavras

Já saiu para a rua a terceira parte do meu conto lá no blog d'Arrumadinha. Ide ver. Ou relembrai primeiro aqui o primeiro capítulo e aqui o segundo. Pelo excerto...promete:


Ele tirou um menu em cartão do bolso do avental. O brunch ilustrado. Falar devia estar fora de moda. Aliás, podia vê-lo a abanar a cabeça ao som da música que lhe chegava ao ouvido esquerdo.
Portanto saiu de casa onde era ignorada pelo namorado, para ir a um café de bairro ser ignorada pelo empregado. Saltou-lhe a tampa. 

 

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09
Abr15

O Assassino de Segredos

Maria das Palavras

Segredo - Imagem jenkelchner.com

Suava das mãos na imagem menos bonita que possam imaginar. Estava nervosa porque ia perder alguma coisa: o segredo que andava a guardar. Escreveu-o numa carta de si para si. Queria lembrar-se mais tarde do que sentia enquanto o segredo era só dela. E daí talvez nunca o relesse. Mas ja tinha uma bigorna em cima do peito, com todo o peso com que parecem cair nos desenhos animados. Estava na hora de matar aquele segredo. De o perder para sempre. De deixar de o chamar assim.

 

Two can keep a secret if one of them is dead. A música repetia-se incessantemente na sua cabeça enquanto esperava a hora do encontro com o assassino do seu segredo. 
O medo estava a tomar conta do seu corpo. Tomou um chá trémulo e saiu. 
Era primavera e o sol já tinha decidido não se esconder mais. A dona Rosalina, com a neta gorduchinha pela mão, dirigiu-lhe um aceno, como quem diz boa tarde. O senhor Júlio do mini-mercado - o que nunca a deixava sair de lá com um queijo sem lhe ensinar a parti-lo uma e outra vez ("tem de ir ao centro, a menina"), com a seriedade de quem ensina equações -  fumava à porta, cofiando o bigode. Os carros passavam, sempre mais depressa do que deviam. Que falta de respeito, o mundo não parar enquanto ela vivia com aquele segredo. Que desplante o da dona Rosalina a passear com a neta, o Sr.Júlio a fumar descontraidamente, o sol a brilhar, os carros sem travar. Que desplante seguirem todos com a vida e ela sem saber o que fazer, a querer pressionar o botão da pausa a todo o custo.

 

Caminhou até ao banco de jardim do costume. Aquele em que se sentava com ele, já em criança, quando trocavam desenhos, as bicicletas encostadas à árvore a tentar não cair.  O assassino do seu segredo seria o menino-já-homem com quem tinha trocado o primeiro beijo. E o último.


Foi um erro. Encontraram-se por acaso: voltei a morar aqui, disse ele. Estava na antiga casa dos pais, agora restaurada. E ela estava numa ao pé, da dele e da dos pais. Na rua que era de todos, do outro lado do jardim onde estava o banco deles.
Trocaram simpatias. Trocaram novidades. Trocaram o primeiro beijo sem as bochechas quentes de terem corrido pelo parque nos minutos anteriores. Trocaram-se. Foi um erro.

O coração dela era uma lebre irrequieta: pulava-lhe do estômago à garganta. Viu-o chegar. Não o deixou falar e fez morrer logo ali o segredo. Pegou-lhe na mão: estou grávida.
E ele esboçou um sorriso desorientado. Abraçou-a para sempre. Foi só uma noite depois de uma vida e foi uma noite que valeu uma vida.


E o coração dela passou de lebre a tartaruga. Acalmou-se, voltou ao compasso normal. O segredo estava morto. 



[Obrigada Homem Certo por me teres posto a pensar nisto dos segredos que se perdem.]

 

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27
Mar15

Sete anos de Azar II

Maria das Palavras

Mas o João era tudo o que ela conhecia. Já lhe conhecia os humores, os hábitos, as ronhas, as manias. Sabia as piadas de sempre de cor. Não só ela: a família dela. Adoravam o João e o seu charme descontraído. Também sabiam de cor as piadas dele, mas não se poupavam a rir de todas as vezes que ele as repetia. O que a irritava verem-nos a rir-se uma e outra vez da mesma frase batida.

Acabar com ele estava fora de questão. Continuar com ele também.

 

Assim terminei a primeira parte deste conto que é publicado mensalmente no blog d'Arrumadinha. Corram para ler a continuação - já nas bancas!

 

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11
Mar15

Era só para te dizer...

Maria das Palavras

[Quando a separação segue o exemplo do amor e se instala sem aviso.]

 

Pixabay - Blue eyes, red lips

 

 

Gostei de ti igual todos os dias. Pintei os lábios para ti todos os dias. Fiz-te rir todos os dias. Fui contigo a todo lado.
E mesmo assim foste embora.

 

Li um livro de cada vez que mo aconselhaste. Vi contigo as séries classificadas acima de 8 no IMDB. Apreciei os álbuns antigos do teu pai. Não pus um cobertor a mais na cama porque tens sempre muito calor. Cozinhei os teus pratos favoritos e provei os que cozinhaste tu, com um sorriso, mesmo quando ficavam salgados.
E mesmo assim foste embora.

 

Fomos amantes. Amigos. Companheiros. Família.
E mesmo assim foste embora.

 

Nada mudou e, no entanto, algo mudou. Tu sabias e não me disseste. Continuaste a conversar comigo com a mesma cadência sobre as coisas corriqueiras. Continuaste a fazer-me rir. A ter-me por companhia para ver o filme do momento. A querer-me na tua cama.
Até ao dia em que, mesmo assim, foste embora.

 

Se eu não tivesse gostado tanto de ti, pintado os lábios para ti, rido contigo, passeado contigo, lido o que tu aconselhaste, visto as mesmas séries, ouvido os mesmos álbuns, se tivesse acrescentado o cobertor na cama, se não tivesse partilhado a cozinha contigo, sido tua amante, amiga, companheira, mulher...tinhas ido embora na mesma.

Porque o problema não estava em mim, estava em nós. O Rui Veloso estava enganado. Um dia serás feliz com alguém que nem sequer oiça a mesma canção. O Rui Veloso estava enganado. E eu vou pintar os lábios para outra pessoa: para mim.

 

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