São oito da manhã num veículo da Carris. Ninguém é feliz às oito da manhã num veículo da Carris.
Até chegar aquele casal que sobe mesmo o autocarro de mão dada, como quem passou a primeira noite em concubinagem e agora volta ao trabalho com a mesma roupa de ontem (embora bem engomada).
Até aqui tudo bem. Até que oiço um CHUAC. Bota beijo ruidoso nisso.
Um autocarro cheio de silêncios de remela e aquela gente a fazer espalhafato por causa de um beijo.
Novatos, pensei. Coisas de um amor fresco, que quer ecoar no mundo para ter a certeza de si.
Depois repetiram. Só mais um beijo ruidoso. E eu até achei bem. Os passageiros que não se tivessem apercebido do casal à primeira podiam ter pensado que o barulho era uma peça do autocarro a descolar.
Há um tal de ensinamento passado de geração em geração para os casais em início de vida comum: nunca adormecerem zangados e mesmo que haja briga de meia-noite pelo meio não adormecer sem um miminho final.
Há quem lhe chame um bom conselho, eu chamo-lhe um programa de incentivo ao cinismo (ou não fosse eu do contra). Qualquer beijo que não seja resultado direto do carinho que nos transborda naquele momento exacto pela pele é um beijo vazio. Beijos por obrigação, por hábito ou porque assim é que deve ser, são beijos que ofendem o amor que tantas vezes transportam. Mimos contra-vontade que desvalorizam todos os tantos momentos em que são cheios de calor. É como quem diz que ama vinte e quatro vezes ao dia: vulgariza a palavra e o sentimento. Tornam um "amo-te" num "bom dia" rotineiro - deixa de ser especial proferi-lo, passa antes a ser mau sinal a sua falta. Assim se transforma um mais em menos.
Às vezes adormeço chateada porque assim é a vida. Porque não há botão de pause&play para qualquer coisa que dói. Ou porque o "desculpa" ainda não está na ponta da língua. Porque tudo passa (aquela zanga também) mas não tem de ser naquele momento, porque a sabedoria popular quer.