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Maria das Palavras

A blogger menos in do pedaço, a destruir mitos urbanos desde 1986. Prazer.

18
Fev16

Agasalho

Maria das Palavras

Hoje entalei as calças nas meias - não digam a ninguém. Saí mesmo de casa de calças entaladas nas meias.

Três camisolas. O casaco felpudo. Luvas. Gorro - aquele que me deixa só 3 centímetros de cara.

As botas de lenhador(a) bem apertadas com quatro nós cegos.

Tenho frio. 


Não tenho senão frio desde a semana passada. Vista o que vestir ou a queimar junto à lareira, como se fosse mais uma lasca de lenha a querer entrar. Não tenho senão frio.

Mesmo a sopa da minha mãe, que normalmente me deixa em vapores, não resulta. Talvez não possa resultar se não tenho fome e me fico por meia dúzia de colheradas que a língua quer travar. Não tenho fome mas tenho frio.

 

Chego a casa, ligo o pequeno ventilador que faz muito barulho. Deixo-o estar ligado para sempre - tão poucas coisas são para sempre e o ventilador ligado também não é - às vezes até adormeço com a dança ruidosa da ventoínha. Por estes dias parece que não oiço bem, sequer. Talvez o frio me tape um pouco os ouvidos. Me adormeça os sentidos todos. 


Hoje abusei. Dizia eu que até entalei as calças nas meias. As meias de algodão, porque debaixo das calças de ganga ainda tenhos os collants. Não deixo nada ao acaso. Não percebo como deixo o frio entrar, assim tão bem agasalhada. 

Depois tirei as luvas na entrada do edifício, cumprimentei rapidamente um cliente que já vinha a sair - atrasei-me outra vez. Por causa do frio. Passou bem? Tenho a mão gelada diz-me ele, pareço um bloco de gelo.

 

Acho que foi nesse momento que comecei a perceber. Pareço um bloco de gelo, disse ele. Esforcei-me tanto com mantas de lã e camadas de roupa e o ar condicionado do escritório sempre nos 35º, a porta bem fechada, o trapo a tapar a fresta. Esforcei-me tanto para não deixar entrar o frio. E o frio era meu. Estava dentro de mim, colado à pele, preso nos lábios, em cada músculo,  a correr-me nas veias. Tenho o frio no fundo do peito, no lugar do teu vazio. 


Afinal menti, esquece o que te gritei enquanto juntavas as tuas coisas no saco grande do ginásio - porque eu te disse que não valia a pena comprarmos uma mala grande, se nunca viajamos. Menti. Menti-nos. Menti-me. Interessa-me saber porque foste embora. Gostava de saber o que mudou ao fim de tantos anos. Tantos que já nem me lembrava que sem ti era fria como um bloco de gelo. Tantos que me esqueci que és tu o meu agasalho de tudo.  Tantos que confundi frio com tristeza, porque tu me protegias dos dois.

 

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11
Mar15

Era só para te dizer...

Maria das Palavras

[Quando a separação segue o exemplo do amor e se instala sem aviso.]

 

Pixabay - Blue eyes, red lips

 

 

Gostei de ti igual todos os dias. Pintei os lábios para ti todos os dias. Fiz-te rir todos os dias. Fui contigo a todo lado.
E mesmo assim foste embora.

 

Li um livro de cada vez que mo aconselhaste. Vi contigo as séries classificadas acima de 8 no IMDB. Apreciei os álbuns antigos do teu pai. Não pus um cobertor a mais na cama porque tens sempre muito calor. Cozinhei os teus pratos favoritos e provei os que cozinhaste tu, com um sorriso, mesmo quando ficavam salgados.
E mesmo assim foste embora.

 

Fomos amantes. Amigos. Companheiros. Família.
E mesmo assim foste embora.

 

Nada mudou e, no entanto, algo mudou. Tu sabias e não me disseste. Continuaste a conversar comigo com a mesma cadência sobre as coisas corriqueiras. Continuaste a fazer-me rir. A ter-me por companhia para ver o filme do momento. A querer-me na tua cama.
Até ao dia em que, mesmo assim, foste embora.

 

Se eu não tivesse gostado tanto de ti, pintado os lábios para ti, rido contigo, passeado contigo, lido o que tu aconselhaste, visto as mesmas séries, ouvido os mesmos álbuns, se tivesse acrescentado o cobertor na cama, se não tivesse partilhado a cozinha contigo, sido tua amante, amiga, companheira, mulher...tinhas ido embora na mesma.

Porque o problema não estava em mim, estava em nós. O Rui Veloso estava enganado. Um dia serás feliz com alguém que nem sequer oiça a mesma canção. O Rui Veloso estava enganado. E eu vou pintar os lábios para outra pessoa: para mim.

 

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18
Fev15

Gira-discos

Maria das Palavras

O Miguel já estava a ficar crescido demais. Dava uns passitos trôpegos, qual potro desajeitado, mas lá se equilibrava, normalmente agarrado ao joelho da mãe. 

- Não mexas aí Miguel. Não.

Tão crescido e já com tanto do mundo ao alcance que chegava ao velho gira-discos. Como explicar-lhe que ninguém devia tocar ali?

O marido entrou deu-lhe um beijo na testa e fez o Miguel voar pela sala. Risos que encheram a sala, até sobrar espaço só para os três e mais ninguém. Sem ser o pai biológico do seu pequeno potro, o Casimiro era o melhor pai que lhe conseguiria dar até ao fim dos seus dias, sabia disso. Era também o marido perfeito no papel. O amigo perfeito no seu coração.

Entrou na sua vida no momento errado, para fazer com que tudo desse certo. Começou por acompanhá-la na gravidez, como seu médico. Passou a acompanhá-la na vida, como seu marido. Trouxe o Miguel ao mundo. Mais pai que tantos pais. 

 

- Tens de arrumar isso.

Dizia ele muitas vezes acerca do gira-discos.

 

 

Gira-discos - Maria das Palavras

 

O gira-discos foi tudo o que sobrou do seu primeiro casamento, com o pai do Miguel. E só olhar para ele invocava os momentos intensos que tinham passado juntos. Intensidade era a palavra certa. Um cavalheiro à moda antiga que lhe abria a porta do carro e lhe dava passagem no elevador. Que a levou a jantar à luz das velas. Que dançou com ela em lençois de cetim. Que muitas, muitas vezes dançou com ela ao som daquele gira-discos. The way you look tonight, cantava invariavelmente Sinatra. E ela, que jurava a pés juntos que não sabia dançar, deslizava com a mão dele pela cintura e pisava todos os acordes da música no momento certo.

 

Houve uma noite de Dezembro em que ele lhe trouxe um vestido vermelho para estrear, que lhe marcava a cintura, mas lhe libertava os movimentos de bailarina. Bailarina só para ele, só com ele. Deixou-a aprontar-se até ao toque de perfume e colocou-lhe um colar lindo de brilhantes ao pescoço. Ela estremeceu com a beleza da jóia, que ele disse ser incomparável à dela. E ainda antes de sairem para jantar, antes de dançarem a música deles mais uma vez ao fim da noite, ele completou o conjunto com um anel de noivado.

Na noite que antecedera o casamento, dançaram em cima da sorte e do azar. Passaram a noite juntos - eles e o gira-discos.

E ela não sabe ao certo quando foi que a paixão dos passos de dança, se transfigurou noutro tipo de paixão. Quando foi que os beijos que lhe mordiam, passaram a arrancar pedaços dela.

 

O marido foi adormecer o Miguel e ela ficou a sós com o gira-discos e com os seus pensamentos. Deixou mais uma lágrima correr-lhe pelo rosto. Depois outra. Depois muitas. Sem compasso. Silenciosas. 

 

Naquela noite a música parou abruptamente, mesmo tendo continuado a tocar muito tempo. Tempo demais. Até nascer o Miguel.
Ele não tinha bebido - ele não bebia. Mas estava inebriado com ciúmes sem razão de ser. E ela experimentou-lhe a palma da mão no rosto que ele antes só beijava. A pauta desfez-se em linhas tortas. Para sempre.

Muitos foram os tangos em fúria a partir dessa noite. Muitos foram os pedidos de ajuda que se silenciaram e morreram nos seus lábios.


O marido voltou à sala para a encontrar, por mais um vez, a soluçar com as memórias do passado. Para mais uma vez a ameaçar que se livraria daquilo. Para mais uma vez ela chorar mais só com essa ideia. Para mais uma vez, como na primeira, quando ele percebeu o que se passava, lhe dar o abraço mais protetor que ela alguma vez sentira. Um carinho envolvente, que de fato, ela não conhecera antes, enquanto sapateava numa relação sem limites. 


Ele pensava que eram só as más recordações que a faziam soluçar. Quando a verdadeira razão para ela se manter ligada ao gira-discos e não se conseguir desfazer dele, a verdadeira razão por que chorava...era o amor que havia sentido e perdido. Uma intensidade nunca recuperada. Uma paixão arrebatadora que transbordava no velho gira-discos. Uma paixão já sem palco.
Ela nunca o punha a tocar. O gira-discos nunca tocou depois daquela primeira bofetada. Continuava a ser  tradução perfeita, imaculada, do amor mais forte que ela sentira. 

 

Só no momento em que ela conseguisse perceber que o amor era uma coisa diferente se conseguiria desfazer dele. Talvez quando deixasse o seu marido entrar verdadeiramente nas mágoas que escondia no peito e curá-la - sem os seus dons de médico, com os seus dons de humano. Entretanto, não o voltaria a pôr a tocar. Porque, isso ela já sabia bem, há músicas que não se devem dançar.

 

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