o pai diz que a crise está quase a acabar e em breve poderemos sair do abrigo sem risco de sermos cozidos vivos. Há até muitos humanos a falar em dar abrigo aos refugiados e o pai pensa que estão finalmente a aceitar que temos direito à vida e a toda a alface que queremos. No entanto também há pessoas que dizem que têm de ajudar primeiro os seus mendigos. Eu percebo, nós, caracóis, ao menos temos a casa às costas. Devem estar a falar das lesmas.
Uma ranhoca,
Martim
9 de Setembro de 2015
Querido Diário,
Há um alerta geral e estamos todos recolhidos novamente. Tudo porque o Felismino disse que estava a ouvir passos.
Uma ranhoca,
Martim
10 de Setembro de 2015
Querido Diário,
Afinal o Felismino estava a ouvir Passos, mas era o primeiro-ministro dos humanos. Um debate que deu à costa, ou lá o que foi. Em princípio estamos safos e a poucos dias da liberdade. Ainda bem, porque a Miriam não me deixa em paz. Agora viu fotos da filha do Mourinho e anda sempre com a casca toda puxada para baixo, mesmo quando está ao pé do pai. Ela entretanto começou um blog. Tem dicas de moda e beleza. Chama-se "Baba de Caracol" e chega lá muita gente todos os dias a perguntar se ela vende baba.Quer convencer-me a abrir negócio com ela, mas eu tenho medo que ela aproveite para abrir outras coisas.
Uma ranhoca,
Martim
17 de Setembro de 2015
Querido Diário,
Fui avante com a ideia da venda de baba de caracol no blog da Miriam. Estamos a ganhar dinheiro a rodos. Tem sido bastante fácil adquirir matéria-prima - basicamente vamos junto do avô quando ele adormece (que é sempre de boca aberta) e recolhemos. O meu primo Carlos que é epilético também já se ofereceu para ajudar.
Uma ranhoca,
Martim
[Todas as entradas do Diário do Martim Caracol, aqui.]
Encolhi-me mais no sofá a agarrar os joelhos junto ao peito. Ele a gritar comigo em resposta à minha tristeza. Que não sabia o que queria, que exigia muito dele, que ele não adivinha.
Mata-se a trabalhar pela família. Oiço-o dizer isto muitas vezes. E não tem um agradecimento em troca.
Há três anos decidimos que seria melhor assim, quando nasceu o Miguel. Eu dedicar-me-ia a tempo inteiro aos nossos filhos e à casa. Os avós estavam longe, não podiam ajudar. O dinheiro para a creche dos dois seria mais dispendioso do que eu recebia de ordenado, num emprego que era um beco escuro de desapontamentos. Foi uma decisão comum, por toda a família. Que me custou parte da independência e quase todas as aspirações. Ele esqueceu-se disso: que foi uma decisão comum, por toda a família. Eu nunca cobrei a minha parte. Ele cobrava-me muitas vezes o sacrifício dele.
Nesse dia, a Teresinha e o Miguel já dormiam. Eu, que me sabia essencialmente feliz, tinha algumas frustrações guardadas no peito. Era um daqueles dias em que só conseguimos ver nevoeiro. Eu estava só com ele, a ver um filme qualquer no sofá. O meu companheiro de sempre e para sempre. Sentia-me segura. Abandonei-me a ele e comecei a chorar devagarinho.
Levantou-se a um tempo, como se a minha mágoa fosse chuva ácida. Sem que o atacasse, começou a defender-se a perguntar-me o que queria eu. Balbuciei um "Precisava que..." mas algures entre os soluços e a reação dele perdi a habilidade de juntar letras e proferir sons.
Mais uma vez não sabia o que eu queria. Queria que desembuchasse. Tremi com aquela palavra feia. "Pede-me o que quiseres, mas não me faças isto", atirava ele. Ao fim de tantos anos, aquela era a única coisa que ele ainda não tinha aprendido sobre mim. Perguntou-me sem tréguas, minutos a fio, o que eu queria e, sem outra resposta da minha parte que não o silêncio de olhos baixos, desistiu.
Eu sozinha, quieta, chorosa, desesperada pelo seu amor. Ele inflamado, distante, frenético, deseperado porque me ama. "Não sei o que queres", repetiu saindo da sala.
Fomos ao cinema e sobrou parte do balde de pipocas. Queríamos ir (eu e a minha irmã) cheirar os livros à FNAC. Ela nem queria entrar porque ja sabia que iam implicar com as pipocas e eu ofereci-me para o levar na mão.
O segurança vem logo direito a mim (eu a fazer um ar desentendido): "não se pode comer aqui". E eu disse com gentileza e elegância que não íamos comer, só não tinhamos forma de guardar as pipocas - há bom tempo que não se usam aquelas bolsas de mulher que mais pareciam tendas de campismo (sim, tive algumas).
A boa notícia: Fui honesta. Não comemos nem uma pipoca ao longo do percurso na FNAC.
A má notícia: Ela veio de encontro a mim e entornei cerca de 357 de pipocas no chão junto às figuras de animação da Nintendo. Que apanhamos envergonhada e apressadamente para a minha mala e para os bolsos dela.