Hoje não é ano novo para mim, nem para o mundo. Ainda assim é hoje (todos os dias?) que quero implementar a minha resolução. Nem sequer a resolução é nova, mas como é uma tentativa que tem de se renovar a todos os segundos vou escrevê-la (outra vez). Talvez assim pegue de vez. Talvez assim pegue por hoje.
Sinto que os anos que passam me melhoram e me amargam. Nunca fui mais feliz do que sou hoje. Nem mais carregada de preocupações. Nunca fui mais segura. Nem mais consciente das minhas fraquezas. Tenho tudo constantemente em loop na cabeça (quão leve será um passarinho ingénuo?). Tenho a sapiência de saber no que me devo focar ou deixar de lado a cada momento. Sei o que posso controlar e o que devo esperar - ou não - dos outros. Sei que a maior certeza é que os planos podem ser mudados.
Então descontrai, Maria. Aprende a viver com isso sem que isso viva dentro de ti. Sorri mais e preocupa-te menos. Depois de fazeres o que podes, o que tiver de ser, será.
[Ao escrever isto lembrei-me de algo que até tenho medo de dizer em voz alta: será que é de exercício físico que estou a precisar? Sem ser só para o corpo, mas para aliviar a mente? Um iogazinho? (e não sejam ordinários)]
As tradições (as nossas, como as do mundo) servem para nos emprestar um sentimento de conforto. Com tanta instabilidade, mudança, evolução e marcha-atrás da vida, faz-nos falta saber que há coisas que não mudam. Ou que não mudam enquanto isso depender de nós.
Há muitos anos - e está gravado numa cassete VHS - eu, a minha irmã e as minhas "primas do Natal" gritávamos aos saltinhos é quase meia-noite, é quase-meianoite com a aproximação pintada de adrenalina da hora décima segunda, qundo o galo canta a missa e nós abrimos as prendas. Tenho trinta anos e já não podemos, porque as coisas mudam, lá está, passar o Natal com as primas. Mas continuamos a esperar pela meia-noite, como se crianças houvesse, para abrir as prendas. E cantamos baixinho, cada uma só para si, mas em coro se virmos bem: é quase meia-noite, é quase meia-noite.
Não serei certamente a única. Nem sou nem de perto a pior. Sou até das pessoas mais práticas e pragmáticas que conheço. No entanto, acontece. Quando estou mal, estou mal. Quando estou bem, lembro-me que me estou a esquecer do que está mal.
Creio que é falha humana, fomos mal programados. Gostava de pôr as preocupações e sonhos inalcançáveis no pasta da reciclagem e esvaziá-la. Gostava de pôr o lado lunar no vidrão e deixar que a Sociedade Ponto Verde tomasse conta do assunto. Gostava de embrulhar os medos com papel colorido do Toys'R Us e oferecê-los a outra pessoa que quisesse lidar com eles. Pois. Ninguém. Mas eu também não gosto de receber bombons com recheio de licor no Natal e aceito-os com delicadeza.
E quando estou a tentar entrar no modo carpe diem (porra para quem inventou isso) e tenho uma Mariazinha vestida de branco a usar auréola à direita a dizer "aproveita" e a outra Mariazinha de vermelho e pequenos chifres de vermelho no ombro esquerdo - não estou a tentar fazer nenhuma analogia política - a dizer "não te estás a esquecer disto?", gostava mesmo, mesmo de ser um parafuso. Ou um vaso de flores. Ou a página de um livro. Ou o atacador de um ténis. Qualquer coisa menos eu.
No caminho para a consulta de ontem, passei à minha porta de muitos anos. De lá saía uma noiva. Assim do nada. Daquela porta de entrada de prédio onde passei tantas vezes saía uma mulher vestida de noiva. Parei para pensar (parei apenas metaforicamente, que já ia quase atrasada) no tempo que lá vivi. Foram quase dez anos, que acabaram há perto de três. Espremi o peito por um bocadinho de saudade e não saiu nada. E fui feliz ali, que bem sei. Fui feliz e infeliz, morei sozinha e acompanhada, estudei, trabalhei e fiz nenhum, levei lá muitos amigos a comer bacalhau com natas e um tacho de conversa, vi jogos da seleção sentada no chão, na micro-TV com colegas em volta de braços no ar, ri-me, chateei-me, cacei osgas e pus vinagre na varanda para afastar os gatos que a tomavam por urinol. Os momentos ficam onde pertencem. Gostei de viver esse tempo, como gostei da minha infância de brincadeiras à volta da casa de terreno grande dos meus avós, onde as maiores preocupações da minha vida eram apanhar uma carraça que me matasse de febre amarela ou engolir uma pastilha. Como gostei da adolescência das paixões desmesuradas e não correspondidas, quando jogava volei com a C. junto às varandas altas dos vizinhos e me fechava no sotão com a P. a ensaiar canções da Céline Dion em francês. Não tenho saudades do que vivi, estou bem no meu tempo que num ano transato. Não por estar melhor ou pior. Mas porque tudo tem um ordem mais ou menos caótica e eu sinto-me bem a seguir a minha.
Bom dia. São sete da manhã, estou longe da rotina, no Gerês, e não quero dormir mais. Só porque sim. Creio que consegui afastar as preocupações do sono, a temperatura está amena e a cama é boa. Mas esgotei a paciência para fechar os olhos à manhã. Visito o jardim pensando que posso ir ler para lá para não acordar o Moço. Há quem goste de ler de noite, eu sou da manhã. Está tudo molhado, não sei se de orvalho ou de uma chuva leve - e ao fundo ainda o fumo negro que não é nevoeiro, são restos de fogo. Parece-me que nem o Cávado acordou ainda, esgotado de travar incêndios. Os galos sim, que os oiço. Deixo aberta a porta do quarto que dá para o terraço e deixo entrar luz e ar fresco. Sento-me na cama e o Moço dorme ao meu lado. Se a vida me deixasse deitar-me-ia sempre cedo e leve. Nunca me permitiria estar demasiado cansada ou farta para me levantar fora desta hora que me é natural. Entretanto já são oito e os sinos das igrejas entoam o Avé Maria à vez. O Moço ainda não quer acordar. Já disse bom dia?