A minha mãe chegou a ter uma pequena retrosaria lá na terra - que começou num ímpeto e acabou de supetão, quando a assaltaram numa noite. Ainda lhe sobraram algumas mercadorias. Por exemplo, este fim-de-semana, ela perguntava-me se queria ficar com umas peças de lingerie que ainda por lá tinha, cuequinhas sobretudo.
Já em tempos o Moço a estender roupa deixou cair para a janela do vizinho velhote uma das minhas cuequinhas pretas de renda. O vizinho nunca mais me olhou da mesma maneira.
Ontem foi a vez de me apresentar sem intermediários. A estender uma toalha, desenrolo-a e salta uma tanga verde alface (para se ver bem). Foi para o terraço da vizinha do primeiro andar. Sem stress. O vizinho do lado já nos tinha informado que era normal e sugerido que arranjássemos um acessório de pesca e uma corda para resolver o assunto. Moça prevenida, já tinha tudo em casa, montei a "cana" (que era um fio com um gancho no fim) e toca de a fazer descer até ao terraço. O vento não ajudava, não acertava nas cuecas e ainda eu estava a meio da minha tentativa quando oiço chegar...o cão da vizinha do primeiro andar. Puxei o gancho para não aleijar (ou trazer para cima) o animal e assisti impávida cá de cima ao cão a morder e esfocinhar as minhas ricas cuecas.
Fiz um minuto de silêncio pela peça de lingerie, engoli uma lágrima guardando o luto para mais tarde e segui na tarefa de estender roupa.
Estava farta de estender roupa e já só faltavam umas peças pequeninas e finas (pois...mais cuecas). Peguei em 3 e juntei-as numa mola. Assim as levei ao estendal e as deixei cair no mesmo segundo.
Pronto, não podia evitar mais. Corri despenteada ao primeiro andar para a vizinha me safar algumas cuecas. O taradão do cão a ladrar fininho à porta. A vizinha afasta-o e pede-me que espere um bocadinho.
Entrega-me quatro pares de cuequinhas finas, rendadadas, do tipo que ela desaprova e aponta para as verdes: "estas o cão roeu". A ordinária (que sou eu) agradece e volta para casa. Estende o resto da roupa (tudo miudezas) dentro de casa. Por hoje já mostrou roupa interior suficiente à vizinhança.
A vizinha acha que eu sou simpática. Não sei se já lhe disse mais do que "boa tarde" um par de vezes, mas ela acha que eu sou simpática.
Tenho para mim que é do sorriso. O que nunca lhe entreguei com dentes que se mostram e lábios que se arreganham. Antes o que se percebe no tom de voz ou no olhar - que faz toda a diferença.
Às vezes é só isso que falta a um qualquer funcionário da repartição de finanças da Rua da Alfândega enquanto nos explica o preenchimento do modelo 37-F.