Não é que a porra do coágulo é coisa séria? Eu juro que tentei não tossir mas, tuberculosa como estava, em determinados momentos foi tal e qual como se me tivessem pedido para não pestanejar (tentem lá isso, por 2 ou 3 dias). Nem sequer foi tosse branda, a noite trazia autênticas sessões de cuspir os pulmões. Portanto espera-me a morte por dente do siso, que ao que parece, é uma realidade - e toda a gente na comunidade dos dentistas sabe que pode acontecer quando se arrancam dentes, mas ninguém avisa o pessoal.
Juro que hoje já senti dois tremeliques na perna e imagino que seja o coágulo que se desprendeu do buraco do siso e me viaja alegremente pela corrente sanguínea até encontrar onde estacionar.
Partlhei com a minha irmã, que se preocupou logo: primeiras para ficar com a tua roupa, livros e computador!
Não costumo ter estes laivos de hipocondria, mas não consigo deixar de rever a imagem do dentista a dizer "se não tossir vai correr tudo bem", sem o ar de gravidade que a situação precisava. Nada que avisasse que era questão de vida ou morte. Soubesse eu e tinha enfiado um pano na boca por três dias, feito um furo na garganta com esferográfica para passar o ar, como fazem nos filmes, induzido anestesia geral, qualquer coisa.
Pronto, era só para desabafar e dizer isto: se morrer, escrevam por mim. Digam que fui uma grande blogger (mintam descaradamente).
O meu avô era benfiquista. Eu não. Sempre fui sportinguista, em movimento contrário a toda a família. Foi na passagem de ano e muitos anos já passaram. Quando o mundo todo estava a começar de novo, o meu avô acabou. É incrível como ele tinha quase setenta anos e para mim nunca chegou a ser velho. O meu companheiro de viagens barrigudo, com quem preenchi cadernos de quadras (havia um que tinha capa do Rei Leão, lembras-te mãe? sabes onde está? onde fizemos o relato em verso de uma viagem a Mirandela?).
Não percebi que ele ia morrer - digo assim, sem eufemismos. Não sei quando se tornou suposto que ele deixasse de estar conosco. O meu pai avisou-me. Mas ainda há umas semanas ele tinha visitado a minha casa em Lisboa, eu acabara de me mudar para a capital para estudar e os meus avós vieram ver se a neta mais velha estava bem instalada. O meu avô? Fresco que nem uma alface? Lá por estar no hospital, isso não queria dizer nada. Os médicos nem sabiam bem o que ele tinha. Estava enganado o meu pai. Só que não. Num instante estava a minha mãe coberta de lágrimas a pedir-me que trocasse a camisola cinzenta por outra mais escura. 1 de Janeiro. Não há brilho, nem dourados e o único "novo" deste "ano" é desgosto.
Não fui ao funeral. Tinha idade para isso. Não me arrependo.
Já não estava lá o meu avô e eu não ia conseguir dar alento a ninguém. Disseram-me que não tinha de ir, que podia ficar a tomar conta das mais pequenas. E eu agarrei com dez mãos a oportunidade para não pisotear o meu sofrimento, assistindo a um ritual de morte que considero bárbaro e escusado. Coisas minhas.
O Benfica não ganhava o campeonato há dez anos na altura que o meu avô morreu. Dez. Nessa época, mais tarde, em Maio, sagrou-se novamente campeão. O meu avô não viu. Esperaram os anos certos para não lhe dar mais uma alegria. E é por esta razão perfeitamente irracional e dramática, que jamais conseguirei perdoar o clube encarnado, simpatizar com ele ou apreciar o voo da águia.
Imagine-se uma pessoa que não é amada. Que experimentou um beijo entusiasmado e depois foi fechada numa cela vazia e quieta, sem saber se é para sempre, só com a recordação desse beijo. Por quanto tempo se sentirá viva sem propósito algum?
Não é isso que fazemos aos livros que colecionamos? Lemos todas as páginas, mais sofregamente, ou devagar, a saboreá-las. Depois fechamos a capa, encostamo-los ao peito, felizes pela leitura, tristes porque terminou. Gostámos tanto. Jamais nos poderíamos desfazer dele. Guardamo-lo na prateleira. Não o damos porque já está usado, não o vendemos porque o queremos conosco, não o emprestamos porque sabe Deus que podemos não o ter de volta, não o relemos porque já sabemos a história e gostamos de ser surpreendidos. E ele fica ali arrumado, qual peça decorativa, a ser tocado pelo espanador, volta a abrir-se se alguma vez no meio da limpeza tem a sorte de cair ao chão.
E não me digam que sou ridícula (apesar de ser verdade) e que os livros não têm vida. Quando muito, têm várias. Então fica a questão: os livros morrem por não serem lidos?
Se assim for, nem toda a gente mata os livros (há quem se desfaça delas, quem os empreste com leveza, quem os releia incontáveis vezes), mas eu mato. E mais assassinos haverá por aí. Penso se serei capaz de deixar de ser egoísta e fazer o melhor pelo espécime em papel. Fazer até uns trocos ou fazer outra pessoa feliz. Mas sobretudo isto: ressuscitar o livro. Ou deixá-lo viver. Ser lido. É a mesma coisa. Está bem, eu vou dormir...
Vi a minha morte de forma claríssima. Sei como vai acontecer e não precisei de nenhuma cigana para me ler a sina. Pulmão perfurado por uma costela durante um abraço daqueles apertados do Moço.
Não existe. Portanto, foi complicado o meu pai arranjar a melhor forma de dizer à minha irmã que o nosso cãozinho tinha morrido (a minha mãe diz sempre "falecido", como que a suavizar a coisa).
Reza a lenda que na tarde em que ele a veio buscar a Lisboa e lhe tentou dar a má notícia, ela falou do cão como nunca antes.
Que saudades tenho dele. Estou ansiosa para chegar a casa e fazer-lhe festinhas Podemos comprar uma bola saltitona para brincar com o K. que a mãe escondeu-as todas?
Eu teria sugerido uma abordagem do tipo anedótico: A tua família morreu toda. Estava a brincar! Foi só o teu cão! Hahaha.
Mas o meu pai foi um pouco mais brando. Em todo o caso ainda estava a rapariga num pranto, já em casa, a tentar digerir a notícia, quando para a acalmar os meus pais unem esforços numa conversa deste tipo:
Não fiques assim. Estas coisas fazem parte da vida. Um dia vamos todos morrer e temos de saber lidar com isso. A avó vai morrer, nós vamos morrer...
Conseguiram acalmá-la? Claro que não. Antes apoquentá-la em dobro agora com a perspetiva que toda a sua família morreria e que, seguindo a ordem natural das coisas, ela (a mai-nova) estaria cá para assistir a tudo, com camarote para mortes de entes queridos em cadeia. Conclusão: não há boas maneiras de se dar más notícias. Mas evitar falar em desgraças futuras talvez seja aconselhável.
Não são os pêlos pela casa. Ou o espaço que o bicho ocupa com as suas tralhas, camas, brinquedos. Nem o barulho que faz a ladrar para os outros cães em época de cio. Não é a chatice de ter de se levar à rua. Mesmo à chuva. Mesmo às sete da manhã. Nem ter de gastar dinheiro em vacinas e desparasitação. Ou na ração XPTO que é a única que o menino gosta. Nem vê-lo a pedir por favor com olhinhos meigos quando estamos a roer tremoços e ele também quer. Rondar a mesa à hora das refeições quando está a avó que ele sabe que lhe dá sempre um bocadinho de carne do prato. Não é ele não parar quieto e estar sempre a querer brincar. Nem roer os chinelos e os sapatos. Não é que faça chichi no puff da sala enquanto ainda está ser treinado para ir à rua. Nem que corra atrás das bicicletas feito maluco. Que traga lixo para casa da rua, orgulhoso, entre os dentes. Que traga pulgas e carraças para casa por ter rebolado nas ervas secas que depois temos de ter paciência a tirar. Não é que espalhe as cinzas da fogueira apagada e tente até comê-las. Não é que não responda ao NÃO que pronunciamos firmes tantas vezes como gostaríamos e logo desde pequeno. Nem que esteja sempre a trazer de volta o brinquedo que apita para atirarmos uma e outra vez. Nem que esteja sempre a subir para o sofá ou para a cama - contra a nossa indicação, mas para nossa delícia.
É que - não sendo como as velhacas das tartarugas - eles têm uma vida mais curta que a nossa. E a dor de os perder é diretamente proporcional a todas as chatices (leia-se carinho) que nos prestaram.
Tenho para mim que o amor que nos gera os filhos - e não só o amor pelos filhos - é uma coisa assim descabida e que nos dá e tira vida.
Tenho para mim que o amor de alma gémea, aquele que nos liga à pessoa que contamos que agarre a nossa mão até ao último suspiro, é tão grave (muito embora diferente) como o que nos liga aos filhos.
Tenho para mim que esse amor que está ao nosso lado, que nos faz querer os tais filhos, criá-los e vê-los abandonar o ninho e depois vê-los de longe, pode não ser menos válido ou intenso, que o que temos aos seres que criámos. Que é diferente, porque nos podemos desligar desse amor, como nunca nos desligaremos de um filho que tem a nossa raiz nos pés. Mas que é, por seu lado, incondicional, porque não há nada biológico que nos diga para amar aquela pessoa. E a incondicionalidade de amar quem no princípio não nos é nada, é tão bonita quanto amar alguém a quem demos o princípio.
Por isso não compreendi quando ouvi isto:
Tinha 84 anos e morreu-lhe a mulher. Está num desgosto...Parece que foi uma filha que lhe morreu!
E a mim parece-me estranho que isto seja estranho. Porque não pode o sofrimento dele pela falta da companheira dos seus dias todos, ser assim tão vincado? Perder a filha teria invertido a ordem natural das coisas. Perder a mulher foi perder quem lhe deu a filha e lhe daria a mão no resto dos seus dias.
Ou então estou a ver mal a vida.
Não tenho filhos, por isso tenho apenas teorias. E, quem sabe, a vossa opinião...
Nenhuma outra palavra exprime assim, em simultâneo, cobardia e coragem.
(isto a propósito da morte do Robin Williams, uma daquelas pessoas que para mim nunca iam morrer - não era um ator, era as personagens todas que encarnou)
Penso sempre nisto: que é mais fácil para quem parte (se é que parte para lado algum). Quem fica vivo é que morre. Um pedaço de cada vez. Uma pessoa de cada vez.
Eu já morri por duas vezes. A primeira tirou-me um pedaço gigante. Levou-me uma parte da infância, um colo, viagens de Verão e parceiro para jogar às damas. Nunca mais fui encher os garrafões de água à fonte. Da segunda vez morri menos, mas morri muito naquele abraço interminável de quem morreu inteiro ao ver a sua alma gémea partir.