Não são os pêlos pela casa. Ou o espaço que o bicho ocupa com as suas tralhas, camas, brinquedos. Nem o barulho que faz a ladrar para os outros cães em época de cio. Não é a chatice de ter de se levar à rua. Mesmo à chuva. Mesmo às sete da manhã. Nem ter de gastar dinheiro em vacinas e desparasitação. Ou na ração XPTO que é a única que o menino gosta. Nem vê-lo a pedir por favor com olhinhos meigos quando estamos a roer tremoços e ele também quer. Rondar a mesa à hora das refeições quando está a avó que ele sabe que lhe dá sempre um bocadinho de carne do prato. Não é ele não parar quieto e estar sempre a querer brincar. Nem roer os chinelos e os sapatos. Não é que faça chichi no puff da sala enquanto ainda está ser treinado para ir à rua. Nem que corra atrás das bicicletas feito maluco. Que traga lixo para casa da rua, orgulhoso, entre os dentes. Que traga pulgas e carraças para casa por ter rebolado nas ervas secas que depois temos de ter paciência a tirar. Não é que espalhe as cinzas da fogueira apagada e tente até comê-las. Não é que não responda ao NÃO que pronunciamos firmes tantas vezes como gostaríamos e logo desde pequeno. Nem que esteja sempre a trazer de volta o brinquedo que apita para atirarmos uma e outra vez. Nem que esteja sempre a subir para o sofá ou para a cama - contra a nossa indicação, mas para nossa delícia.
É que - não sendo como as velhacas das tartarugas - eles têm uma vida mais curta que a nossa. E a dor de os perder é diretamente proporcional a todas as chatices (leia-se carinho) que nos prestaram.
Tenho para mim que o amor que nos gera os filhos - e não só o amor pelos filhos - é uma coisa assim descabida e que nos dá e tira vida.
Tenho para mim que o amor de alma gémea, aquele que nos liga à pessoa que contamos que agarre a nossa mão até ao último suspiro, é tão grave (muito embora diferente) como o que nos liga aos filhos.
Tenho para mim que esse amor que está ao nosso lado, que nos faz querer os tais filhos, criá-los e vê-los abandonar o ninho e depois vê-los de longe, pode não ser menos válido ou intenso, que o que temos aos seres que criámos. Que é diferente, porque nos podemos desligar desse amor, como nunca nos desligaremos de um filho que tem a nossa raiz nos pés. Mas que é, por seu lado, incondicional, porque não há nada biológico que nos diga para amar aquela pessoa. E a incondicionalidade de amar quem no princípio não nos é nada, é tão bonita quanto amar alguém a quem demos o princípio.
Por isso não compreendi quando ouvi isto:
Tinha 84 anos e morreu-lhe a mulher. Está num desgosto...Parece que foi uma filha que lhe morreu!
E a mim parece-me estranho que isto seja estranho. Porque não pode o sofrimento dele pela falta da companheira dos seus dias todos, ser assim tão vincado? Perder a filha teria invertido a ordem natural das coisas. Perder a mulher foi perder quem lhe deu a filha e lhe daria a mão no resto dos seus dias.
Ou então estou a ver mal a vida.
Não tenho filhos, por isso tenho apenas teorias. E, quem sabe, a vossa opinião...
Nenhuma outra palavra exprime assim, em simultâneo, cobardia e coragem.
(isto a propósito da morte do Robin Williams, uma daquelas pessoas que para mim nunca iam morrer - não era um ator, era as personagens todas que encarnou)
Penso sempre nisto: que é mais fácil para quem parte (se é que parte para lado algum). Quem fica vivo é que morre. Um pedaço de cada vez. Uma pessoa de cada vez.
Eu já morri por duas vezes. A primeira tirou-me um pedaço gigante. Levou-me uma parte da infância, um colo, viagens de Verão e parceiro para jogar às damas. Nunca mais fui encher os garrafões de água à fonte. Da segunda vez morri menos, mas morri muito naquele abraço interminável de quem morreu inteiro ao ver a sua alma gémea partir.