A vida dos outros e as cortinas
O maior desgosto da minha avó é que eu não ponha cortinas lá em casa. Já chegou ao ponto de me dar dinheiro para as cortinas (usei-o para comprar tapetes para o quarto). Se soubessem o quão forreta é a minha avó, saberiam o significado que isto tem.
O argumento dela não é estético, é social: as pessoas podem ver o que se passa cá em casa. Só a sala se presta a que alguém olhe e veja qualquer coisa, pela vidraça grande da varanda. Já lhe expliquei de mil formas que não faz mal, não farei nada que a envergonhe (não que ela conheça alguém em Lisboa), nem tenho nada a esconder. O que lá tenho de valor é mesmo só a TV e, mesmo o mais tonto dos meliantes, há-de adivinhar que tenho uma, mesmo que não a conseguisse avistar. Acrescento que o meliante que me visse a TV teria de ser meu vizinho do prédio da frente, porque da rua não se vê nada cá para dentro - não moro propriamente no rés-do-chão.
De resto, não me preocupo com isso porque eu própria não me incomodo minimamente com a vida dos outros. Demorei mais de um ano, para ver o cão do outro lado da rua, na varanda mesmo à frente da minha, quando toda a gente que lá ia a casa já o conhecia de cor. Não sei se será problema meu ou dos outros. Aposto as fichas no segundo cavalo. Em todo o caso, não há cortinas.
Assim, quando calha a minha avó vir à capital e ir lá casa, senta-se na mesa ao jantar, de frente para a varanda e já sei que me vai voltar a dizer:
- Vês? A vizinha daquele lado ainda não parou de olhar para aqui. A querer ver o que se passa.
Já nem me dou ao trabalho de a fazer notar que estava a fazer exatamente o mesmo que a vizinha que acusa de indiscrição.