As tragédias não se medem aos palmos.
Estava em Leiria, onde tenho os meus, mas a distância bem segura. Tão segura que nem dormi com o telemóvel por perto, onde começavam a entrar mensagens de quem queria saber se com a minha família estava tudo bem. Tinha o Moço, os meus pais, a minha irmã, a minha avó ali ao pé. O mundo parecia sossegado. Ao mesmo tempo, as cinzas de um fogo a lavrar longe caíam na varanda do mesmo quarto onde eu dormia, numa sorte que centenas não teriam nessa noite, tão pouco nas seguintes. E as minhas queixas do início da tarde de Sábado, ainda em Lisboa, numa volta rápida à Feira do Livro, porque não me aguentava com tanto calor, que estava impossível, que o Sol me queimava as pernas, eram agora o eco de uma menina egoísta e ignorante, uma ironia miserável. Não sei se as grandes tragédias tornam menores os problemas do quotidiano, das coisas pequenas de cada um. Num ciclo vicioso de eu não me poder queixar de calor, porque nunca perdi nada num incêndio, de quem perde a casa no incêndio não se poder queixar, porque há quem não tenha casa, de quem não tem casa não se poder queixar porque em determinadas zonas de África não há sequer água potável e as crianças definham antes de crescerem. E depois perde-se mais uma vida e não interessa nada, senão a vida que se perdeu, e as vidas que agora parecem desencontradas por causa disso. Não interessa a contagem final, o número redondo da tragédia, que a imprensa internacional usa para os títulos. Interessa o um mais um mais um mais um mais um mais um mais um. A estória de cada pessoa, num sofrimento único, desligada do evento maior. Não interessa tanto que o incêndio tenha ceifado dezenas de vidas como que tenha ceifado uma só de cada vez, ou uma que nos toca, é a realidade crua. É assim que vejo isto tudo e é assim que sinto, à distância. Não é uma tragédia de grandes números, são muitas tragédias de pequena dimensão. É cada uma dessas que vai doer muito tempo a quem é próximo, não é a maior que vai doer a seja quem for que agora faz discursos em choque sobre o terror vivido no país. E é cada uma dessas que nos comprime o peito, mas não asfixia. Sabemos lá o que é fumo.