Comparti(mentalizar)
Consigo dividir a vida em frações. Sabem aquele vídeo em que um tipo descreve as diferenças entre homens e mulheres? Os homens têm cada assunto em caixas separadas, bem arrumadas, que se vão buscar quando são necessárias, as mulheres têm um novelo sem fim, com tudo interligado. Eu sempre fui mais como os homens. Tenho secções bem definidas em áreas arrumadas, como na melhor página do catálogo do IKEA.
Por exemplo, quando o meu avô morreu, e a fim de um tempo, pu-lo numa caixa. Dito assim parece cruel, ou que estou a fazer uma piada mórbida. Não é isso. Arrumei a minha dor numa caixa enorme que ocupou uma divisão inteira na minha cabeça. Empurrei-a para os fundos. Só vou buscá-la quando não consigo mesmo evitar esse corredor. Deixei as boas recordações (e são tantas) numa caixa mais acessível, numa prateleira daquelas que uso muitas vezes. Está na estante da família, ponto geográfico: Leiria. As coordenadas sei de cor.
Há quem diga que por fazer isto sou fria, que estou a evitar sofrer e a acumular dores por não extravasar. Não é verdade. É a minha forma de lidar com as coisas e não há nenhum espaço a apodrecer nesta minha mansão.
Faço isso com tudo, não só o que é mau: também organizo o que é bom (amigos aqui, ambições pr'ali). Não é um processo logístico complicado, não preciso de contratar um (ar)Mário a recibos verdes para dar conta do recado, é-me natural. Umas têm material frágil, outras inflamável, é só ler a indicação. Depois, às vezes, em vez de chorar, escrevo.
Isto para dizer que é assim que eu reconheço um problema sério: as prateleiras das caixas caem em dominó. E porque a vida não é (para grande desilusão geral) um catálogo do IKEA não posso fazer logo compartimentar e tenho de me mentalizar para isso. Obrigam-me a trocar caixas de uns lugares para os outros e algumas enchem e ficam a transbordar, tocando a próxima. Ou não me deixam fechar a caixa delicadamente, embora seja óbvio para mim que já não é necessária. Ou tenho de passar tanto tempo a arrumar uma caixa que me esqueço das outras. E não faz mal. Porque no fim hei-de pegar nisso tudo que correu mal e arrumar nos fundos. Deixo cá à frente as lições, as boas recordações, e o futuro todo, embrulhados num cartão que diz "este lado virado para cima".