Diário de um Caracol - Parte 3
26 de Junho de 2015
Querido Diário,
O Felismino trouxe-nos a nós e mais uma família para morar num sítio a que chamamos "o sotão", apesar de ser debaixo da terra. Inspirado pelo livro da tal Anne Frank, diz que aqui estamos mais seguros dos cozedores de caracóis vivos. Temos de andar ainda mais devagar para não fazermos barulho e nunca sermos apanhados, o que significa que escrevo aqui do meio da divisão - já estou a tentar encontrar-me com a minha mãe desde as 10 da noite de ontem, que tem ali qualquer coisa para nos alimentarmos, ao fundo da sala. Diz que é um "sumo verde". Que nos ajuda a racionar enquanto estamos aqui fechados e ainda por cima é bom para a saúde, diz ela, faz a gosma mais viçosa.
Uma ranhoca,
Martim
1 de Julho de 2015
Querido Diário,
Estou a dar em doido aqui fechado. Ainda por cima a caracoleta que é filha da outra família que veio para o sotão conosco está sempre a meter-se comigo. Cá para mim, é um bocadinho saída da casca. O clima continua a ser de muito medo e insegurança. O Felismino que de vez em quando vai lá a cima ao quintal, diz que somos cada vez menos na comunidade, mas que começa a haver uma certa esperança que à medida que diminuimos, os humanos se voltem para outras espécies e comecem a comer gafanhotos. Ele é mesmo muito informado e diz que uma vez rastejou numa página que falava sobre uns humanos do outro lado do mundo que o faziam.
Uma ranhoca,
Martim
5 de Julho de 2015
Querido diário,
cometi uma loucura e fugi. Como agora estamos a habituar-nos a andar mais devagar também não fui longe. Assim que saí para a terra do quintal e mordisquei uma erva, apareceu uma criança que começou a cantar e a bater palmas para mim, numa espécie lenga-lenga satânica: Caracol, caracol, põe os corninhos ao Sol. Felizmente não me agarrou e eu voltei logo para trás. Aprendi a minha lição. A mãe diz que eu tive muita sorte em não ter sido apanhado, mas que fui vítima de bullying.
Uma ranhoca,
Martim
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