"Hás-de dizer-me onde é o teu caixote do lixo!"
Sabem quando nós dizemos isto? A propósito de alguém que desdenha de um homem ou mulher que parecem maravilhosos? "Quem o Filipe? Mas ele é tão alto...Não faz nada o meu género." E o Filipe é lindo, simpático, o perfeito encontro entre sensível e assertivo?
Já ouviram a expressão? Já a usaram? Pois este texto não tem nada a ver com isso.
Aproveitei o feriado para dar cabo das últimas caixas das mudanças. Era uma das caixas mais difíceis, daquelas de tralha literalmente falando, mas que não se deita fora porque temos uma ligação emocional com as coisas ou achamos que as vamos usar apesar de nunca olharmos para elas (e de quando são efetivamente precisas nem nos lembrarmos que as temos). Um bilhete de cinema. Um bombom daquela ocasião. Faturas velhas. Canetas sem tinta. Uma fita colorida que um dia pode dar jeito para embrulhar uma prenda. A agenda de 2010 meio usada. A lembrancinha do aniversário da prima da vizinha que continuava guardada. O guia que fiz para visitar aquela cidade onde não vou voltar.
Peguei em mim e fiz a seleção possível. Desfiz-me do que já não tinha desculpas para guardar e guardei o resto com a desculpa de que quando precisar de espaço faço uma nova triagem. Juntei tudo o que era para deitar fora na caixa original, juntei-lhe o saco do lixo praticamente cheio da cozinha e fui deitar ao contentor. Reparei que havia uma senhora muito próxima da zona do lixo que me parecia estar a desparafusar umas mobílias encostadas ali deixadas, quando já era tarde demais para voltar para trás. Ainda por cima, a caixa de cartão que tinha tudo estava molhada e a rasgar-se e eu já não podia mais suster tudo nos braços. Virei o conteúdo para o contentor.
Voltei para casa. E no caminho virei-me para trás. A tal senhora, relativamente bem vestida, com uma malinha de mão e tudo, estava a catar o lixo. Ao afastar-me ela abriu a tampa do contentor e puxou parte do que eu tinha acabado de deitar fora para espiolhar e escolher. Tive um sentido de estar a ser invadida. Deu-me um nó no peito. Apeteceu-me gritar: HEY, ESSE É O MEU LIXO! Mas deitei-o fora. Disse que já não me servia. O que pensar disto? Pensei em falar com ela ou em chamar a polícia: ela estava a meter-se onde não era chamada e de repente eu nem me lembrava se tinha deitado alguma coisa importante como um documento velho. E ao mesmo tempo ela não estava a fazer mal nenhum. Estava a violar-me. E não estava.
O meu lixo podia mesmo ser (um) tesouro dela? E que tipo de vida tem de se levar para fazer do lixo de alguém o seu tesouro? E é certo ou errado?
Não tenho respostas, só perguntas. E tenho aprendido que assim sei mais.