Mas cinco e faz um ano
Ia tão carregada, a dor de cabeça a pingar-me na cabeça (plim plim plim), que me sentei nos lugares reservados a grávidas e deficientes (não havia nenhum à vista). Na paragem a seguir vem a senhora com um casaco de inverno muito quente, logo hoje que o calor nos serve de gola alta, e senta-se ao meu lado. Estamos as duas de costas para a estrada, mas eu vou com tudo em cima e mais um livro onde repouso a vista - não a concentração. Então é para a vizinha da frente que a velhota fala:
Vai chover que eu sei. Veja essas nuvens. E eu sinto-me tonta, sei bem que o tempo vai mudar. O Verão já vai a meio sabe? [sem resposta] Estamos em Julho. Sete meses do ano já passaram. Faltam cinco. Foram sete, faltam cinco e estamos em Dezembro. Mais um pouco e estamos na passagem de ano. Mais um ano. Acho muito mal agora o que fazem as pessoas que morrem. Que as queimam, sabe? [sem resposta] Um enterro já é uma coisa má, mas queimar as pessoas? Eu não quero. Acho horrível, mas é o que se faz agora. Mas pronto, mesmo quem é enterrado ao fim de cinco anos é levado do cemitério. Cinco anos, não é? [sem resposta] E passou Julho. Passaram sete meses. Mais cinco e faz outro ano. Vou sair aqui. Bom dia. [sem resposta]
Quem a ouvisse percebia que, de facto, já estamos a mais de metade do ano, que o tempo talvez vá mudar, que a senhora não quer ser cremada, mas no fundo não acha boa nenhuma das opções para a morte. Quem a ouvisse bem, do lado de dentro das palavras, percebia que ela se sente muito sozinha, que anda a fazer as contas à vida há muito tempo, na esperança de virar mais um, mas que há-de querer, quando o ano não virar outra vez, alguém que lhe leve flores durante muito tempo.
Eu levantei os olhos do livro e olhei para ela: bom dia.