Sozinho em Casa
Este ano o filho não pode vir. Por causa do trabalho, como disse ao telefone já há um par de semanas, da última vez que lhe ligou para saber como estava de saúde. Ajeitou novamente o lume, com os cepos que lhe restavam da última volta que deu no pinhal ao pé de casa. Estava muito frio para voltar lá agora. E o filho do Cristovão que às vezes trazia lenha também para ele, já não visitava os pais também fazia uns meses - as viagens à terra estão cada vez mais caras.
A televisão estava desligada. O Natal dos Hospitais já não tinha ninguém que conhecesse e também já não tinha a sua Lucinda ao lado a dar-lhe cotoveladas para reparar no vestido desta e daquela cantora. Há tempo demais que ninguém lhe dava uma cotovelada.
Quase podia ouvir ainda a chaleira a chiar e ela ainda tão novinha a perguntar ao pai se também aceitava uma chávena. O sr.Aníbal da drogaria mandara-o entregar uns cartuchos para a caça lá em casa do Doutor. O Doutor recebeu-o com um sorriso e chamou a Lucinda, a filha, para fazer um chá ao rapaz, que era ele. E ele viu-a e soube com a certeza dos loucos: havia de casar com ela. Havia de passar com ela o resto dos seus dias - cotoveladas e tudo. Não fosse a vida ter-lhe pregado a rasteira de a levar tão cedo, cedo demais. Quase sentia o aroma do chá de limão, que ela lhe preparava sempre.
- Sr.José, o seu chá está pronto.
A senhora da bata azul passou pela porta e interrompeu-lhe os pensamentos. Pousou o chá na mesinha ao lado dele. Que estava aquela jovem ali a fazer?
Às vezes baralhava-se. Perdia a noção por um segundo. A "jovem" era uma senhora nos seus avançados cinquentas, que trabalhava para a associação local. O filho pagava a mensalidade que lhe dava direito às refeições, às limpezas, enfim, aos cuidados que podem ser os estranhos a dar.
- Deixei-lhe tudo pronto e acrescentei umas rabanadas ao menu do costume. Não se esqueça que amanhã não passa cá ninguém. Se precisar de alguma coisa tem o nosso número ao pé do telefone. Boas festas.
Ligou a televisão sem ele pedir. E pregou-lhe um beijo na testa antes de sair. O atrevimento! A Lucinda haveria de lhe contar das boas, se pudesse ver aquilo.
Olhou pela janela e viu a moça a afastar-se. Ao longe casas iluminadas, mais do que o costume. Lembrou-se. Era Natal. Contava oitenta e três Natais. E, sozinho em casa, pedia a Deus que não tivesse de contar mais nenhum.
Fala-se em Sozinho em Casa no Natal e todos temos a imagem do Macaulay Culkin e dos bandidos trapalhões na cabeça. E esquecemo-nos de desejar que fosse esse o único "sozinho em casa" associado a esta quadra. O único filme muito visto. Partilhem. Pode ser que toque a consciência de alguém que possa fazer a diferença.