Daqui a pouco tempo já terei vivido tantos anos com o meu avô quanto sem ele, o que me parece francamente inacreditável, tal é a importância que teve na minha vida. Fazíamos quadras os dois (ele também era "das palavras" mesmo com a 4ª classe), íamos buscar àgua à fonte, ele deixava-me alimentar os coelhos à boca e carregar os baldes (vazios) até à parte afastada do quintal onde corria água e cresciam as favas. Ao fim do dia, eu lia com a cabeça pousada na barriga dele enquanto dormia ou via televisão. Mostrou-me mais do nosso país, os três no carro, a ficar em pensões numa altura em que o Booking era mesmo chegar e ver se havia lugar para nós, do que tenho visto ultimamente (e não é por falta de passeio). Fomos a Salamanca e quando ele pediu um café solo trouxeram-lhe um pêssego. Coisas pequenas que ocupam um espaço grande na minha memória.
Hoje ele faria 83 anos, apesar de não ter chegado a celebrar os 70. Foi-se embora pouco antes dessa ocasião, na passagem de ano, e os anos nunca mais passaram para ele. A vida continua para quem fica, porque tem de continuar. E todos os anos que vivi ao lado dele foram prenchidos de tudo, pelo que não me podem entristecer, só deixar saudade. Só há uma coisa difícil de aceitar: que ele, um dos (três) homens da minha vida, não tenha conhecido o Moço, para saber que tenho quem tome bem conta de mim e me deixe ler em cima da barriga.
O meu avô era benfiquista. Eu não. Sempre fui sportinguista, em movimento contrário a toda a família. Foi na passagem de ano e muitos anos já passaram. Quando o mundo todo estava a começar de novo, o meu avô acabou. É incrível como ele tinha quase setenta anos e para mim nunca chegou a ser velho. O meu companheiro de viagens barrigudo, com quem preenchi cadernos de quadras (havia um que tinha capa do Rei Leão, lembras-te mãe? sabes onde está? onde fizemos o relato em verso de uma viagem a Mirandela?).
Não percebi que ele ia morrer - digo assim, sem eufemismos. Não sei quando se tornou suposto que ele deixasse de estar conosco. O meu pai avisou-me. Mas ainda há umas semanas ele tinha visitado a minha casa em Lisboa, eu acabara de me mudar para a capital para estudar e os meus avós vieram ver se a neta mais velha estava bem instalada. O meu avô? Fresco que nem uma alface? Lá por estar no hospital, isso não queria dizer nada. Os médicos nem sabiam bem o que ele tinha. Estava enganado o meu pai. Só que não. Num instante estava a minha mãe coberta de lágrimas a pedir-me que trocasse a camisola cinzenta por outra mais escura. 1 de Janeiro. Não há brilho, nem dourados e o único "novo" deste "ano" é desgosto.
Não fui ao funeral. Tinha idade para isso. Não me arrependo.
Já não estava lá o meu avô e eu não ia conseguir dar alento a ninguém. Disseram-me que não tinha de ir, que podia ficar a tomar conta das mais pequenas. E eu agarrei com dez mãos a oportunidade para não pisotear o meu sofrimento, assistindo a um ritual de morte que considero bárbaro e escusado. Coisas minhas.
O Benfica não ganhava o campeonato há dez anos na altura que o meu avô morreu. Dez. Nessa época, mais tarde, em Maio, sagrou-se novamente campeão. O meu avô não viu. Esperaram os anos certos para não lhe dar mais uma alegria. E é por esta razão perfeitamente irracional e dramática, que jamais conseguirei perdoar o clube encarnado, simpatizar com ele ou apreciar o voo da águia.
Até vinha a calhar que passasse. Que eu acreditasse que do 31 para o dia a seguir, algures entre o champanhe e as passas (e eu que não gosto de nenhum!), há um filtro, um coador de café, mas grande - para a vida. O grão ficava preso em 2014 e só passava o que há de mais fino e suave - os sonhos e os sorrisos que não se apalpam mas se sentem.
O ano novo não traz nada de bom - pelo menos nada que nós não possamos trazer a cada dia do ano, sem ajuda do calendário e fogo de artifício à volta do mundo, ao bater de cada hora, em cada lugar.
As coisas boas, como as coisas más, não trazem data marcada e não sabem quando vestir lantejoulas para a festa.
Há dez anos atrás, quando o meu avô morreu de 31 para o dia a seguir, o ano não passou. E desde aí que os anos não passam na contagem decrescente de um minuto de Dezembro para outro em Janeiro. Passam nesse ou noutro dia qualquer quando a minha história muda para melhor. Conto que o ano passe algures em 2015, para mim e para os meus: que o calendário vire, dia circundado a vermelho vivo numa semana qualquer. Mesmo que não seja na noite em que o mundo todo o quer celebrar. Mesmo que seja em todos os dias menos neste.