É engraçado como só usam a palavra bully para classificar os jovens idiotas nas escolas, quando há tanta gente adulta com ganas de aterrorizar e fazer de tudo para quebrar quem demonstre o menor sinal de fragilidade. Tanto num caso como noutro, é fácil de ver como isso provém de uma intensa falta de amor-próprio.
Vou comentar o vídeo do momento, sobre as duas miúdas que batem no rapaz, só porque vejo muito boa gente no Facebook a atirar rapidamente um "a culpa é dos pais".
Queria dizer que, sim, somos produtos do meio em que fomos criados, mas há muita coisa que contribui para a nossa formação e gosto de acreditar que há algo de nosso na forma como bebemos e vivemos o mundo. Isto sem querer entrar em teorias psicológicas e sociológicas de geração de personalidade, onde há correntes para todos os gostos.
Mas uma coisa é certa: já conheci pessoas, com quem inclusivamente andei na escola, filhos de gente malcriada e violenta, outros literalmente criados entre as vacas. E não tinham o mau génio destas catraias (e dos que os acompanham). E já conheci gente de berço de prata (ouro é demais para mim) que são filhos da mãe do pior. E conheço irmãos, filhos dos mesmos pais e da mesma educação em que um é mais que decente e o outro uma besta.
Com isto não quero excluir que a culpa seja dos pais. Não quero dizer que não possa haver ali muita educação em falta. Mas já agora, só por brincadeira, vamos por a hipótese que até pode não ter nada a ver. Que a maldade também pode ser inata ou aprendida noutros circuitos - já que as crianças não crescem em bolhas.
[Nota adicional: Aquele vídeo é deveras estranho, só a mim é que parece que o garoto estava a alinhar numa espécie de brincadeira para a câmara? Pelo menos de início?]
A Carolina veio a cantarolar da escola. Que canção é essa, filha? perguntei-lhe eu. E ela repetiu:
"Não atires o pau ao gato-to-to, porque isso-so não se faz-faz-faz...minha mãe-mãe-mãe, ensinou-me-me, a gostar, a gostar dos animais! MIAAAUUU!!"
Já não se atira o pau ao gato.
Pedi-lhe que se chegasse ao pé de mim e fiz-lhe uma trança no cabelo. Perguntei-lhe se tinha fome. Nunca tem fome. Desde que o irmão perdeu o apetite ela também. Tão pequena. Sentei-a a ver televisão com uma taça de cereais.
Preparei o tabuleiro com o lanche para levar ao Manel e bati ao de leve na porta do quarto. Às vezes prefiro que ele não oiça, para não me mandar embora antes de eu ter oportunidade de entrar. Está com o livro aberto na mesma página. Sempre na mesma página. Quer que eu acredite que lê. Deixo-lhe o tabuleiro ao lado. Nenhuma palavra. Passo o polegar ao de leve na sua bochecha encarnada. Reparo que o cotovelo está menos inchado mas não lhe toco mais. Pego num livro, sento-me aos pés da cama e espero que ele coma qualquer coisa. Sei que ele o fará para não me preocupar ainda mais. Mas só se eu estiver ali.
Ele deixa de fingir que lê e eu começo a fingir que leio. Mas pelo canto do olho estou antes a vê-lo pegar na comida aos poucos e mastigar. Corta a sandes nas mãos e depois leva à boca. Já não geme ao trincar. Eu já não choro ao ouvi-lo gemer.
Tenho de me lembrar de virar a página. Só de vez em quando.
Quando recebi aquela chamada para o ir buscar - ao hospital não à escola - num segundo tudo fez sentido. A recusa dele em voltar para as aulas a cada Setembro. Neste último em especial. O grupo de rapazes (e não, não eram só rapazes) que o fazia desviar-se para o outro lado do passeio quando o deixava de carro do lado certo da escola. Não era "coisa de criança", como dizia a mim mesma.
Vira a página.
Serei má mãe por não reparado. Já pensei nisso muitas vezes. Não me vou enganar, é tudo o que penso. Também é o que os outros pensam. Também é o que o Carlos pensa. Eu é que o ia levar à escola. Eu é que o ajudava a preparar-se de manhã e lhe ouvia os protestos. Eu é que devia saber.
Mas como poderia eu saber, que num mundo em que já nem se atira o pau ao gato, as crianças seria violentas a este ponto umas com as outras? Não foi por isso que mudaram a canção?