Quando tocou à campainha da mãe os nervos já lhe tinham passado. O Mendes tinha tanto de pouco recomendável como de engraçado e ela descontraía ao seu lado. Por outro lado, os seus dentes muito brancos, os seus olhos muito azuis e o seu cabelo muito louro iam dar a impressão de que ela estava numa fase boa da sua vida - e o que pode ser mais importante do que as aparências? O Luís ia desistir de qualquer tentativa de flirt e a mãe ia desistir de lhe tentar fazer arranjinhos com os filhos nerds das amigas. Com sorte o jantar ainda ia correr muito bem!
Sorte. Uma palavra com poucas entradas no seu dicionário.
Assim que entraram o Mendes começou a fazer elogios altamente despropositados à sua mãe. "Parecem irmãs e não mãe e filha" estava taco a taco com "podia perder-me nos olhos das duas" na competição "frases que não precisava de ouvir do meu convidado". Não havia bem certeza se se estava a candidatar a genro ou ao próximo da fila, mas certamente estava a abusar do galanteio. E o Luís parecia nem reparar. Andava de um lado para o outro, como chef de serviço sem prestar qualquer atenção ao que se passava. Sem qualquer necessidade para tanta azáfama porque a festa de aniversário era afinal um jantar a quatro.
Numa ocasião em que contava ser seduzida pelo seu ex (atual da sua mãe) e fazer inveja às pedras da calçada com a sua conquista do momento, acabou sem a atenção de nenhum, a sorver sopa de açafrão e engolir bocados de borrego sem mastigar - visto que ninguém se lembrou que odiava aquela carne. Fingiu pressa assim que lhe pareceu que tinha aguentado o suficiente (tinha de acordar cedo) e saiu com o Mendes de rojo. Quase se esqueceu de oferecer à mãe o presente que tinha escolhido para ela, uma écharpe cinzenta, tanto que lha ofereceu bem antes de sair e ao fechar a porta ainda conseguiu ouvir do outro lado "e uso isto com quê?".
Tinham vindo no carro do Mendes, mas decidiu que voltaria para casa a pé, que não era longe. Ele protestou:
- Pensei que te ia dar boleia e depois tu me ias pagar a boleia...se é que me entendes. - Não entendo. Obrigada pela companhia.
E afastou-se fazendo uma nota mental para apagar o número dele e não voltar a cair em tentação. Aliás, ia fazer isso agora mesmo. Pegou no telemóvel e esqueceu-se completamente do que ia fazer, Tinha recebido uma mensagem do Luís:
"Estavas linda."
E todas sabemos. Um elogio assim em cima de um ego ferido pode trazer sérios problemas. Quando chegou à porta de casa reconheceu o carro estacionado mesmo em frente.
Quem era?
1. O Mendes, arrependido pela falta de atenção que lhe tinha dado.
2. O Luís, que precisava de falar urgentemente com ela.
Sem dar por isso estava outra vez a morder uma madeixa de cabelo. Já a mãe a tinha avisado que era um tique nervoso muito feio e que devia tentar outra coisa mais elegante, como piscar os olhos. Uma autêntica conhecedora da mente humana, a sua mãe. Só que não. Aliás, quando a sua mãe decidiu fazer "auto-terapia" para enfrentar a viuvez, o resto da família encolheu os ombros. As teorias de Helena prevaleceriam e não havia nada a fazer. Uma das fases envolveu dar abraços a estranhos para que aprendesse de novo a "dar-se ao mundo" nas palavras da própria. Resultou tão bem ou tão mal que a útlima dádiva tinha sido precisamente para o ex-namorado dela.
Contar-se entre as pessoas no mundo que têm a honra de partilhar um homem com a mãe fez com que ela própria precisasse de terapia (mas não arriscou na auto-terapia, nem - por algum motivo - pediu conselho à mãe).
Tinha chegado finalmente ao ponto em que estava em paz com a ideia de que o seu Luís, a relação mais longa que tivera, era agora...o seu padrasto. Verdade que os seus pais sempre tinham gostado dele. Não fazia ela ideia quanto. Mas tendo feita toda a travessia do Inferno para chegar a este lugar de aceitação, começou a desenhar-se o novo problema: tinha bastante certeza que o Luís andava a tentá-la.
Pegou no telemóvel e respondeu que sim. Não tinha outro remédio, era o aniversário da mãe e uma daquelas poucas ocasiões em que ela não tinha estofo suficiente para negar. Além disso a sensação de que o Luís estava a seduzi-la podia ser passageira, quem sabe fruto da sua mente que alternava entre desejar desesperadamente alguém ao seu lado e afirmar o quão satisfeita estava entregue a si própria.
Talvez devesse, só para garantir que nada estragaria a noite, levar alguém com ela. O Frederico acabara de entrar para lhe trazer alguns morangos ácidos num guardanapo. Os favoritos dela. Sorriu. Pelas gomas e pela sua própria decisão. Ligou à mãe para avisá-la que ia levar alguém com ela.
Quem é ela vai levar à festa de aniversário da mãe?
O Mendes, o seu mais recente caso. Se ele a usava, porque não usá-lo ela desta vez?
O Celso, a paixoneta de infância que andava a meter conversa com ela no Facebook.
A chuva picava-lhe a cabeça, ainda assim menos que as suas próprias dúvidas. Já seguia atrasada para abrir a loja – sempre combinava com o atraso para pagar as contas.
A voz seca da mãe em loop: não arranjas homem, ao menos arranja um negócio. Abrir a loja foi só a pior decisão da vida dela. E muito menos lhe permitiu tempo para a primeira opção. No fundo a vida dela resumia-se a um conjunto de decisões erradas: o curso errado, o timing errado para deixar a casa dos pais, os homens errados, o negócio errado.
Era dona de uma pequena loja de artigos informáticos. Porque alguém lhe disse que era “isso que estava a dar”, como quem fala de um programa de televisão. E ela sabia pouco do que dava ou não dava, só sabia que precisava de algo que desse. As poupanças de uma vida (a do pai) serviram ao investimento inicial e a falta de experiência dela fez o resto.
- Olá vizinha!
Ao lado da loja dela ficava a das gomas, que geria o Frederico no lugar da sua avó. Ela a vender discos externos, o Frederico na loja das gomas. O Frederico com o curso técnico informático, ela com uma vida de treino a comer doces. Ah, as graças da vida.
De cabeça enfiada no telemóvel nem deu troco ao Frederico. É que tinha mesmo de responder à mensagem do Luís: