Quando se fechou tudo em casa (e eu também) ficámos só connosco. Foi estranho também para mim, que sou a pessoa mais inerte que um dia conhecerão e que se dá muito bem consigo própria, que de repente o lazer, o trabalho, o convívio e todas as conversas se desenrolassem nas mesmas paredes. Não estranho "mau", estranho "diferente". Nessa altura arranjámos tudo e um par de botas para fazer. Não cheguei a fazer pão, mas fiz bolos, videochamadas, voltei a escrever mais no blog, vi muitas séries inteiras e filmes que estavam na calha.
Depois a mudança passou a ser a nova rotina. Deixei de sentir necessidade de preencher o tempo todo com novidades. Já só faço o bolo que me saiu melhor (favorito da vida). Luto para encontrar uma série que me apeteça. Deixei o blog outra vez a apanhar pó (mais fácil, a partir do momento em que micro-desconfinámos e a primeira pessoa que quis ver à frente foi a senhora que me faz limpeza cá em casa uma vez por semana). Já passou mais tempo sem ver algumas pessoas que gosto muito, mas as chamadas acalmaram.
Não sei como é convosco, mas nós ainda estamos em modo isolamento (os números provam que ainda não passou, e o vírus é exatamente o mesmo desde que cá chegou). Continuo a fazer quase todas as compras online, só saímos para passeios ao ar livre (jamais para algo como comprar uma peça de roupa no shopping), só nos juntamos a família e de forma controlada, distanciada (temporalmente) e com os cuidados possíveis. Também é porque temos a família espalhada pelo país, não é tão fácil como conduzir até perto da sua porta e conversar na sacada, nem queremos por o vírus no intercidades sem pagar bilhete. Depois a maior parte dos amigos está em Lisboa e não nos parece sensato ir até lá buscar bichinho novo, quando o cá de cima ainda está a dar trabalho. E alguns familiares são tão grupo de risco, que se for preciso, eles é que infetam o Covid com as maleitas que já têm e depois é um problema.
Então o que sobra? O essencial.
Tenho lido muito. Tenho lido livros fantásticos e apetece-me partilhar convosco. Já ultrapassei a meta anual desenhada pré-covid e acho que a vou dobrar. Já que o que me faz mais falta é viajar, experimentar, provar sem limites nem cuidados, vivo isso através das personagens que acompanho. Estou sobretudo comigo e com o Moço. Às vezes entendo-me melhor comigo, outras vezes com ele. No outro dia começámos a ver White Lines e quase me senti emocionada ao ver Ibiza, pensar "estivemos ali" e não saber quando voltarei a estar num sítio novo, dos que depois revejo nos filmes.
Já comi carbonara umas 50 vezes - sem exagero. Tem sido a minha comida de conforto. Feita peço Moço - com ovo, sem natas. Parmesão ralado, tudo no ponto. Acho que hoje vou pedir-lhe outra vez.
Tenho trabalhado imenso, mas estou de bem com isso. Faço-o com responsabilidade e leveza ao mesmo tempo. Terei encontrado um ponto de equilíbrio para a vida pessoal e profissional? Acho que ainda não. Sou muito focada e esqueço-me de tudo enquanto trabalho, o que é bom e mau. Foi assim que no outro dia carbonizei um frango assado. Esteve 8 horas no forno. O Moço ligou-o antes de sair de casa e desligou-o quando voltou, depois do trabalho. A travessa aglutinada também foi para o lixo. Não me amolem, sei que podia ter incenciado a casa e não consigo explicar como não me deu o cheiro. Já sofri o suficiente com o facto de ter de esfregar o forno no estado em que ficou.
E novidades? Não tenho. Coisas relevantes para dizer? Também não. Contem-me vocês de vossas vidas.
Vinha só contar-vos de tudo e nada. Sentei-me e escrevi. Agora publico.
É como um jogo. Tudo o que vem da rua tem lepra e não se pode tocar - até o Moço quando regressa do trabalho.
Depois passam para a zona radioactiva da casa (o Moço passa só para o chuveiro) e é ver esta menina a esfregar embalagens com lixívia, a esfregar tangerinas com sabão, com o cuidado e delicadeza com que se banha um recém nascido. O Moço esfrega-se sozinho. A contragosto.
Nunca o meu umbigo, em 34 anos de vida, ficou tão bem lavado como o plástico que envolve um queijo fresco antes de ir morar para a prateleira do nosso frigorífico.
Tenho um nojinho latente de tudo e de todos.
A vida até pode passar a ser levada com este novo normal, aos poucos e com cuidado. Até podemos um dia voltar a um normal muito semelhante ao que já conhecíamos.
Mas só descanso no dia em que voltar a deixar cair uma amêndoa no chão e aplicar a regra dos 5 segundos para a levar à boca.
Saí de casa. 60 dias depois botei o pé na rua. Não fiquei fascinada. Percebi que não me interessa sair sem um objetivo muito específico que é...pois, oiçam. Portanto o passeio durou pouco. Só o suficiente para eu constatar que as minhas pernas ainda funcionam em médias distâncias e para o Moço comentar que ao menos foi bom eu "esticar o pernil".
Ouçam aqui no spotify, ou aqui no castbox (não precisam instalar nada, se não quiserem - ouvem no browser) ou clicando PLAY abaixo.
Não há dúvida nenhuma que um dia, não sabemos quando, isto da pandemia não passará de uma recordação, depois uma história. Também não tenho dúvidas que vamos ganhar alguns hábitos novos que ficam para o futuro - arrisco dizer que algumas pessoas até vão passar a lavar mesmo as mãos quando saem da casa de banho. Tenho mais dúvidas que nos tornemos pessoas melhores, acho que, como sempre, por cada ato de altruísmo, há alguém que leva as latas de atum da prateleira do supermercado todas para sua casa e assim o mundo se equilibra.
Mas até lá o nosso humor vai variando. Na maioria dos dias não ligo a qual será a data de validade do isolamento, só espero que seja superior à da minha farinha que ganhou bicho. Sei que vai ficar tudo bem e, portanto, passo um dia de cada vez, o melhor que posso. Os outros são os dias "era só o que me faltava". Ou, como me lembrei há pouco quando barrei uma bolacha com manteiga de amendoim e ela caiu com o lado pastoso no chão: os dias da Lei de Murphy.
A maior parte das situações que me fazem levar as mãos à cabeça não têm relação direta com a quarentena, mas sei que me apoquentam a uma escala desproporcional por causa dela. E se me apetecer chorar porque a farinha tem bicho (não é corona) e não posso armar-me em pasteleira, quando sei perfeitamente que se não fotografar um bolo o Instagram me bloqueia a conta por violação de normas da comunidade, não tolero que me digam que não tenho razão para isso.
Concluo que lidar com o isolamento é isto. Admitir que de génio e de louco, todos temos um pouco. Menos a parte do génio.
Ontem abri um vídeo num grupo de amigos que mostrava as compras de um deles no Continente. É o tipo de coisas que fazemos em isolamento. Portanto toda a gente viu até ao fim, claro. E tal como nos filmes dignos de Óscar, o climax surgia quase no fim, quando vemos, coroando esta curta-metragem de baixo budget, dois pacotes gigantes (e diferentes um do outro) de papel higiénico.
Eheh. Pacotes. (podia ter dito embalagens)
A mim pareceu-me óbvio que cus diferentes têm sensibilidades diferentes, mas houve quem questionasse: porquê? Ora, nesta fase,o papel higiénico assumiu um lugar de destaque na nossa sociedade - mais importante que Marcelo, embora beije uma área diferente -, e tentar perceber como cada pessoa tem o seu papel higiénico ideal.
O Papel Higiénico Ideal para Cada Tipo de Pessoa
O Poupadinho: Um qualquer, mas usa dos dois lados.
A Influencer: Marca Renova daquele de cores a dar com o outfit do dia.
O perfecionista: Folha dupla ou tripla.
O preguiçoso: Rolos maxi, que se trocam menos vezes.
A ecologista: Usa o bidé. À falta de bidé, a pia da cozinha ou a mangueira do jardim.
O verdadeiro macho: O que a mulher puser no suporte. Se se acabar o que está no suporte, o tapete de casa de banho.
O esquecido: Guardanapos.
O hipocondríaco: Nesta fase de virulência agressiva, lava diretamente com lixívia.
O simpatizante do PAN: Scottex, que tem publicidade com cães fofinhos.
Não falo de problemas menores, como ter saudades da família, falta de acesso a bens essenciais, a quebra da sanidade mental ou situações precárias e sacrifícios vários em nome do bem-estar comum. Falo daquelas situações mesmos graves.
“O meu chefe quer videochamadas diárias.”
Avaria as tuas câmaras para evitar que te vejam. Precisas que seja credível, qualquer martelo com prego, bem assente, resolve o assunto
Guarda apenas uma câmara sã, pode ser um tablet velho, para chamadas ocasionais com familiares ou amigos selecionados. O patronato não pode saber da existência desse último dispositivo se querem continuar a trabalhar sujos, despenteados e nus.
“Eu faço distanciamento quando tenho de sair, mas os outros não. Fui ao supermercado e um velho estava a respirar-me para cima.”
Antes de saíres à rua escreve COVID19 na testa com um marcador preto. Sempre que sentires outros humanos, olha bem em volta para te certificares que te lêem a testa. Em casos mais graves faz um pequeno impulso para a frente e grita “vou-te lamber”.
“Não consigo aturar mais as pessoas que vivem comigo.”
Usa o papel higiénico que acumulaste para construir muralhas e definir espaços para cada um.
“Alguns deles são filhos menores e precisam de mim.”
Da próxima vez que fores deixar compras aos teus pais ou avós que estão em isolamento deixa uma cestinha com os filhos menores ao lado das maçãs. Se já andarem, ata-os ao garrafão de 7lt do Luso. Se mesmo assim conseguirem fugir, também têm bem idade para se safarem sozinhos.
“Sofro muito da cabeça com Tik Toks de pessoas a dançar descoordenadas.”
Ganga não é certamente E a bombazine não cai assim
Ó abençoada invenção Abraça-me e nunca me largues Composto 100% de algodão Quem sabe às vezes até polar Vou vestir-te até ao armagedão Só te tiro para te trocar
E quando te troco é por teu igual Mais coração, menos ovelha Viram dias e noites e dias E tu sempre sobre meu corpo Provideciando mil alegrias
Seja lá quando for, consigo muito bem imaginar como serão os meus dias, quando o isolamento puder oficialmente acabar.
Primeira semana depois da pandemia terminar
Que bom fazer todos os dias o caminho para o trabalho, a apreciar o caminho! Vou trilhar o país e ver a família toda! Viva o convívio com amigos Pequeno-almoço fora, almoço fora, jantar fora. Ninguém me paraaaa!
Terceira semana depois da pandemia terminar
Ai, quem me dera poder trabalhar remotamente, que saudades das reuniões de pijama. ‘Bora ficar em casa no fim-de-semana? Estou farta de andar de um lado para outro. Manda vir comida.
Décima semana depois da pandemia terminar
Mas porque é que tenho de cumprimentar toda a gente, céus, odeio pessoas. Quem é que inventou que as mulheres davam beijinhos a estranhos!? Vamos só aquecer uams sobras quaisquer para comer e fechar-nos em casa.
(Ainda) não fiz pão. Só fui à varanda ler, nada de bater palmas ou fazer música que não gosto de incomodar os vizinhos (e assimcomássim, não tenho a certeza que isso ajude). Não acumulei papel higiénico, nem nenhum género alimentício. Toda a gente quer comprar o que é nosso e eu também, mas o que me apetecia mesmo mesmo era um hambúrguer do Burguer King, com batatas fritas do McDonalds. Não faço encomendas, nem sequer de comida. Não faço treinos de PT nenhum no Instagram (estou a estudar o impacto no ser humano de passar os dias sentada e deitada). Também não vi nenhum live inteiro do Bruno Nogueira (apanho-os sempre a falar do mesmo e deixo o Moço a ver sozinho), nem fiz eu própria nenhum live (o que deve ser ainda mais grave). Não partilhei como estou farta de crianças – ajuda não as ter, nem fui passear o cão – ajuda não o ter. Os meus pais têm cão, mas também não o podem passear porque ele não anda (nem sequer estou a brincar). Não briguei para ser eu levar o lixo (continuo a não gostar, mesmo em tempo de pandemia). Não partilhei fotos de videochamadas, mas juro que já aconteceram algumas e a minha palavra terá de servir. Não organizei as estantes de livros por cores (mas estou a isto – gesto de juntar o polegar ao indicador). Não aproveitei para arrumar gavetas, porque já bem basta ter de limpar a casa. Não criei um podcast, até porque já o tinha.