Numa das passagens que mais me marcou de um livro que li recentemente (não digo qual) há um segredo que Anna conta ao ouvido da filha.
O cenário é o da 2º guerra mundial, na Polónia. A familia é judia, estão reunidos num gueto e nessa manhã há movimentações alemãs que fazem acreditar que os vão levar dali para pior. O marido de Anna fica a dar a cara aos alemães que invadem a sua privacidade para levarem toda a gente que encontrem, enquanto elas se escondem do lado de fora. "Elas" são: Anna e a sua filha já maior, que por sua vez tem a sua criança nos braços e outra amiga. Os alemães levam o pai de família sem piedade - adivinha-se que o destino será qualquer coisa entre um campo de trabalho forçado e a morte. Elas encolhem-se e livram-se da inspeção. Ainda não foi daquela vez que as arrastaram. É então que Anna se levanta e se prepara para se juntar ao marido, aquele a quem um dia terá dito "até que a morte nos separe". A filha agarra-a por um braço, em protesto. Então Anna segreda-lhe algo. E a resistência da filha quebra-se até que liberta a mãe. Esta encaminha-se para o seu destino, seja ele qual for, mas ao lado do homem que ama.
O título e a inspiração para este texto, peço-os emprestados ao Alpendre da Maria Alfacinha. Que Marias há muitas, mas nem todas com esta categoria. Diz ela:
A mim também me contaram histórias em pequena, desde que me lembro de ser micro-gente. O meu pai, mais ainda a minha mãe, cediam sempre ao meu capricho (foram eles que o criaram afinal) quando lhes estendia uma e outra vez um livro. Não as inventavam, liam-mas.
Um dia, disse à minha mãe, do alto dos meus quatro ou cinco aninhos (sei lá): agora leio eu! Peguei no livro e comecei: as palavras todas certas e seguidas. Ela riu-se assumindo que eu tinha decorado o livro inteiro. Só que não. E puxou de outro livro e de mais um, escolheu passagens ao acaso. E convenceu-se: eu tinha aprendido a ler. Não foi à força de os meus pais quererem fazer de mim menina-prodígio, nem o fui alguma vez. Foi - agora peço as palavras emprestadas ao anúncio da Luso - tão natural como a minha sede. As crianças gostam é de brincar e aquela era umas das minhas brincadeiras favoritas (a maior parte das outras envolvia o quintal grande da minha avó e bonecas que eu enchia de bolacha migada).
Contaram-me tantas histórias que me fizeram querê-las contar também. E ouvi-las: sempre. Foi isto. Contar e ouvir histórias faz parte da rotina da minha casa. E não precisa haver crianças. Só uma voz suave, uma pitada de imaginação e pelo menos um par de olhinhos a brilhar. E isso, por aqui, arranja-se sempre.