Nunca tive medo de trovoada, até porque tinha noção que quando ouvia o barulho forte, já a desgraça de podia ter dado, mas lembro-me que isto era uma coisa que me assustava genericamente, mesmo que não houvesse pingo de chuva. Estamos protegidos? Dava muita importância ao pára-raios que morava no topo da igreja da aldeia e que me tinham explicado que assimilava o sacanita do raio por uma boa extensão de território. Mas quanto? E aquele espetinho seria sificiente se o raio fosse forte?
2
Atender o telefone.
Num tempo em que o identificador de chamadas não existia (pois é crianças, isso aconteceu e não foi assim há tanto tempo - a não ser que me queiram chamar velha e faço logo cara de mau-mau-maria), a pior coisa que me podia acontecer quando estava sozinha em casa era tocar o telefone. Ou, não estando sozinha, que os meus pais me mandassem atender por estarem ocupados (a minha mãe com o jantar, o meu pai com o zapping). Além disso, mesmo que fossem amigas, o telefone não se levava para o quarto e tinha de ficar a falar com toda a gente a ouvir #notcool. No entanto, mesmo com identificador de chamadas e de auscultador portátil a coisa nunca me entrou completamente. Falar com as amigas era mais por carta e tinha mais ou menos o uso que os jornais têm agora: só falavam do dia anterior, mas era mais aprofundado.
3.
Entrar em combustão espontânea.
Não sei onde foi que vi ou li que as pessoas podiam entrar em combustão espontânea. Dar-se ali um fenómeno qualquer, com determinadas condições reunidas e PUFF uma 'ssoa podia desatar a arder e finar-se, derretida. Na altura não havia Google e não sei se isso seria bom ou mau. Não pude ler mais sobre o assunto, então fiquei com a ideia que podia acontecer e nem podia ver o que fazer para evitar. Logo eu que nunca fui amiga de beber 1,5lt de água por dia e certamente isso me enquadrava no grupo de risco. Tolices de uma criança que via demasiados filmes e episódios de X-Files. No entanto, agora que escrevo este post na era do Google, também vou escolher nem ir ver se é verdade ou mito.
Uma das rubricas deste blog que me dá mais gozo escrever é o Diário de Um Caracol - o Martim. E não é só porque posso dar azo à minha veia non-sense e exagerada, comentando a atualidade de forma leve e livre de polémicas (quem é que se vai chatear com o nível de cultura ou opinião de um caracol ranhoso?). Também é porque me leva de volta à escola primária.
Nessa altura eu não era de todo a menina mais bonita da escola, com os meus óculos de massa e conjuntinhos tricotados pela avó. Mas tinha muitos amiguinhos e alguns mini-pretendentes por ser a menina “mais esperta”. Parece que é cedo, quando somos crianças, e mais tarde, quando já somos todos maduros, que o interior é mais valorizado. Ali no meio, algures por entre as hormonas, esse raciocínio está toldado. Nunca durante a adolescência, dois rapazes andaram à bulha por mim na sala de aula. Na escola primária, chegaram a ser três.
Além disso, acreditava que ia ser escritora a cada elogio da professora às minhas composições. E ter-se a certeza absoluta que se é mesmo bom numa coisa (a certeza das crianças e dos tolos) sabe a vinte pirulitos.
As minhas composições favoritas eram as “Se eu fosse”. A professora escolhia algo para completar a frase e nós libertávamos o lápis. Ainda hoje me pergunto (mas nunca perguntei a ninguém) se é um exercício de escrita comum ou coisa dessa minha professora. Maravilhosa ferramenta para treinar a escrita e despertar a criatividade enquanto nos divertíamos. Pelo menos eu divertia-me. E nunca tinha de contar as palavras para ver se tinha passado do limite mínimo.
Lembro-me de ser uma nuvem e ter “enchiminhosite” que é quando uma nuvem não consegue chover e que hoje em dia me soa muito a uma descrição de prisão de ventre ou um anúncio de Dulcolax. Lembro-me de ser uma minhoca que dormia numa embalagem de pasta de dentes que tinha sido deitada fora por um humano. E não me lembro de muitas outras coisas que estarão guardadas em páginas amarelecidas (#estouvelha) no sotão dos meus pais.
Se eu fosse escritora, como aquela menina de óculos de massa acreditava há uns 25 anos atrás, haveria de agradecer-lhe - à professora, talvez num prefácio. Como não sou, mesmo que ela não leia, fica aqui hoje no blog: obrigada por me ensinar a imaginar com letras.
Aquele momento em que vês as filmagens de um concerto de música filarmónica em que todo o público estás sentado e sossegado e apenas se destacam duas figurinhas a dançar energicamente nas cadeiras. Eu e o meu sobrinho de 2 anos.
Hoje o post é em honra da minha irmã e da infância super criativa que tive oportunidade de lhe proporcionar. Temos sete anos de diferença e portanto a liderança das brincadeiras era totalmente minha. Jogava com ela a coisas tão divertidas como o transporte de copos de água sem entornar (no fundo era a forma de eu obter um copo de água, mas tornava aquilo uma espécie de Jogos Sem Fronteiras e só faltava a voz do Eládio Clímaco) e o levantamento de pés (eu via televisão, enquanto ela me segurava os pés, eu de pernas esticadas, o máximo de tempo que conseguisse).
A minha mestria para inventar joos revelou-se naquela que é ao mesmo tempo a brincadeira que a minha irmã melhor recorda e a que mais a traumatizou. Vocês sabes o que são rolamentos? E esferas de rolamentos?
Pronto. Sâo peças. De cenas com utilidades algumas (não sei). Sei que o meu pai tinha uma gaveta cheia de rolamentos e esferas de rolamentos à solta.
Então eu reuniao algumas esferas de tamanhos diferentes e compunha aquilo a que apresentava à minha irmã como uma família. Uma família da qual ela deveria tomar conta. Era a esfera-pai, a esfera-mãe e duas esferas-filhas (nunca fugia muito ao nosso próprio retrato familiar).
As esferas alimentavam-se de luz solar e dormiam numa caixa de fósforos devidamente forrada de algodão. Para que sobrevivessem ela devia alimetá-las diariamente, pô-las para dormir nas horas certas e dar-lhes banho (uma gota de água diária para cada esfera).
Era imperativo que as esferas sobrevivessem. Quando estivessem mortas, apresentariam manchas acastanhadas. Que é como quem diz ferrugem. Ferrugem que ela causava diariamente ao dar-lhes o banho de gota de água que eu instruía. Conclusão: ela dizimava família inteiras, umas após as outras. Vivia frustrada com a incapacidade de as manter vivas e sentia que
Eu acho que foi uma sorte ela ter-me como irmã. Já ela, conta hoje em dia esta história (bem melhor que eu) com um ar mais pesaroso do logro do que divertida e saudosa. Não percebo, não percebo...
Una LaMarche escreveu o livro "Unabrow" - que é como quem diz: monocelha. Ela defende que todos tivemos essa fase estranha na nossa infância (de forma mais fofa) ou na nossa adolescência (de forma mais penosa) - os mais sortudos fizeram o homerun. E sim, a menina da foto é ela.
E eu não posso negar. Tive óculos de massa (muito antes de ser cool), um olho tapado por causa do estigmatismo, aparelho nos dentes, cortes de cabelo à tigela e fatos ridículos, não raras vezes a combinar com a minha irmã. Confessem-se meus caros. Está aqui a vossa oportunidade de provar que todos temos um passado. Que #jáfomostodosmonocelha. Não raras vezes, ainda somos.