É como um jogo. Tudo o que vem da rua tem lepra e não se pode tocar - até o Moço quando regressa do trabalho.
Depois passam para a zona radioactiva da casa (o Moço passa só para o chuveiro) e é ver esta menina a esfregar embalagens com lixívia, a esfregar tangerinas com sabão, com o cuidado e delicadeza com que se banha um recém nascido. O Moço esfrega-se sozinho. A contragosto.
Nunca o meu umbigo, em 34 anos de vida, ficou tão bem lavado como o plástico que envolve um queijo fresco antes de ir morar para a prateleira do nosso frigorífico.
Tenho um nojinho latente de tudo e de todos.
A vida até pode passar a ser levada com este novo normal, aos poucos e com cuidado. Até podemos um dia voltar a um normal muito semelhante ao que já conhecíamos.
Mas só descanso no dia em que voltar a deixar cair uma amêndoa no chão e aplicar a regra dos 5 segundos para a levar à boca.
Não há dúvida nenhuma que um dia, não sabemos quando, isto da pandemia não passará de uma recordação, depois uma história. Também não tenho dúvidas que vamos ganhar alguns hábitos novos que ficam para o futuro - arrisco dizer que algumas pessoas até vão passar a lavar mesmo as mãos quando saem da casa de banho. Tenho mais dúvidas que nos tornemos pessoas melhores, acho que, como sempre, por cada ato de altruísmo, há alguém que leva as latas de atum da prateleira do supermercado todas para sua casa e assim o mundo se equilibra.
Mas até lá o nosso humor vai variando. Na maioria dos dias não ligo a qual será a data de validade do isolamento, só espero que seja superior à da minha farinha que ganhou bicho. Sei que vai ficar tudo bem e, portanto, passo um dia de cada vez, o melhor que posso. Os outros são os dias "era só o que me faltava". Ou, como me lembrei há pouco quando barrei uma bolacha com manteiga de amendoim e ela caiu com o lado pastoso no chão: os dias da Lei de Murphy.
A maior parte das situações que me fazem levar as mãos à cabeça não têm relação direta com a quarentena, mas sei que me apoquentam a uma escala desproporcional por causa dela. E se me apetecer chorar porque a farinha tem bicho (não é corona) e não posso armar-me em pasteleira, quando sei perfeitamente que se não fotografar um bolo o Instagram me bloqueia a conta por violação de normas da comunidade, não tolero que me digam que não tenho razão para isso.
Concluo que lidar com o isolamento é isto. Admitir que de génio e de louco, todos temos um pouco. Menos a parte do génio.
Ganga não é certamente E a bombazine não cai assim
Ó abençoada invenção Abraça-me e nunca me largues Composto 100% de algodão Quem sabe às vezes até polar Vou vestir-te até ao armagedão Só te tiro para te trocar
E quando te troco é por teu igual Mais coração, menos ovelha Viram dias e noites e dias E tu sempre sobre meu corpo Provideciando mil alegrias
Seja lá quando for, consigo muito bem imaginar como serão os meus dias, quando o isolamento puder oficialmente acabar.
Primeira semana depois da pandemia terminar
Que bom fazer todos os dias o caminho para o trabalho, a apreciar o caminho! Vou trilhar o país e ver a família toda! Viva o convívio com amigos Pequeno-almoço fora, almoço fora, jantar fora. Ninguém me paraaaa!
Terceira semana depois da pandemia terminar
Ai, quem me dera poder trabalhar remotamente, que saudades das reuniões de pijama. ‘Bora ficar em casa no fim-de-semana? Estou farta de andar de um lado para outro. Manda vir comida.
Décima semana depois da pandemia terminar
Mas porque é que tenho de cumprimentar toda a gente, céus, odeio pessoas. Quem é que inventou que as mulheres davam beijinhos a estranhos!? Vamos só aquecer uams sobras quaisquer para comer e fechar-nos em casa.
1 Não frito nada em casa. Não vou a restaurantes nos próximos tempos. Quanto tempo manterei a sanidade mental sem batatas fritas?
2 As pessoas dizem que daqui a nove meses vai haver um baby boom porque está tudo fechado em casa (supostamente) a fazer bebés, mas ao mesmo tempo publicam o desepero que vivem com os seus filhos em casa de 5 em 5 segundos. Não é compatível.
3 Toda a gente partilha a sua arte para ajudar a entreter os outros. Os chef's partilham receitas. Mas não saberão que as pessoas não devem deslocar-se ao supermercado (e as entregas já estãode 2023 para à frente), para estarem a sugerir uso de ingredientes como polvilho doce ou romaninho de menta achocolatada do Turquistão? Espera...toda a gente tem polvilho doce em casa?
4 Não tenho post its suficientes para trabalhar em casa.