Convenci-o mesmo com todo o meu discurso ecológico, juntei que era mais económico (apesar de já não ser propriamente barato) do que pagar estacionamento ao pé do Chiado e como machadada final lembrei-o que quando estamos fora nunca se coíbe de andar de transportes públicos, por isso se calhar também devia dar uma oportunidade aos da cidade dele.
Ia no metro, em pé, à falta de lugar para me sentar, quando vagam dois. Olho em volta à procura de pessoas debilitadas, não encontro, alapo-me ao assento.
À minha frente alapa-se outra senhora - e, agora que penso nisso, tinha olhar de briga quando cruzei o meu com o dela da primeira vez.
Umas estações à frente noto que ela está a dar o lugar a uma senhora grávida que não sei ao certo quando entrou, mas parece que estava ao lado dela. Sei disso porque logo a seguir a dar-lhe o lugar a senhora começa numa ladaínha para a grávida:
- Pois, as pessoas que estão de frente, fingem que não vêem.
Eu levanto os olhos do meu livro e junto as sobrancelhas para a exclamação da senhora, mas ela já não cruza o olhar comigo. Mas repete:
- As pessoas que estão de frente fingem que não vêem.
Pois era para mim, quem estava de frente. Quem me conhece sabe que eu quando estou comigo nem num pote de ouro com pernas que me passe ao lado reparo. Se não dei o lugar à senhora grávida é porque de facto não reparei. Ela estava de preto, a barriga não era assim tão grande, a mim passou-me despercebida. E sei que ela não estava lá quando me sentei. Mas uma palavra bastaria para me levantar antes da última sílaba. E digo isto, sabendo de antemão o risco de se oferecer o lugar a uma pretensa grávida que afinal pode ser só uma mulher de perímetro abdominal alargado.
A senhora repete ainda uma terceira vez, como numa confidência com a grávida que diz "nós, boas pessoas, sabemos o que isto é".
A minha estação está a chegar e eu levanto-me e digo com palavras muito compassadas para a senhora:
- Não diga isso. A senhora não sabe se eu tinha visto ou não. Acontece que não, ou ter-lhe ia dado o lugar, obviamente.
Apeteceu-me acrescentar que a perjúria também é pecado, até estou a ler um livro sobre as aparições, apraz-me falar em versículos. Mas a minha voz educada e baixa, talvez a palavra "ter-lhe-ia" deixou a senhora desorientada. Reconheci-lhe a espécie. Está habituada a murmurar para o ar sem que ninguém lhe responda. Ou tavez esperasse que lhe respondessem a gritar, com ofensas irracionais, como o marido lhe faz em casa. O olhar dela perdeu-se no teto da carruagem e uma terceira vez:
- As pessoas que estão de frente fingem que não vêem.
Não vale a pena. Ela acha que fez uma boa ação. Eu sei que ela a seguir a apagou. Podia ter ficado com ela, mas sentiu necessidade de destilar veneno - acho que numa especie de "que raio, porque tive de ser eu a dar o lugar?". Acho que a grávida, que nunca por um segundo azedou a expressão, habituada a que finjam que não a vêem, acredito, preferia ter ficado em pé que a ouvir a senhora com a sua aura feia tão perto do fruto do seu ventre.
No fim do dia foi ela quem deu o lugar à grávida e fui eu que mantive a consciência tranquila. Digam-me vocês se não devia.
As personagens que se passeiam pelo metro não se limitam de forma nenhuma a estas cinco. Mas estas conquistam-me pela sua peculiaridade. Não se coíbam de acrescentar os vossos favoritos, se faltam na lista.
A Raça Superior
Vão sempre a ler, nem que o livro esteja de pernas para o ar. Nem que o metro esteja tão cheio que é impossível virar a página e tenham de ler sempre o mesmo parágrafo durante 40 minutos. Lêem mesmo que o metro esteja com perturbações e as luzes se apaguem. Lêem por vezes o mesmo livro durante vários anos. Mas ocultam-no atrás de capinhas de pano com padrão.
Os Inseguros Quando entraram na carruagem aproximaram-se do mapa do percurso e contaram as estações. Sentaram-se. E a partir daí voltaram a levantar-se a cada estação para rever o mapa e contar novamente as estações certificando-se que não deveriam já ter saído. Deitam olhares ansiosos para o mapinha a cada 30 segundos, como quem espera uma surpresa (a plataforma para Hogwarts? a conversão súbita da linha azul no expresso do Oriente?) e esticam muito o pescoço para ver o sinal luminoso que diz o nome da estação seguinte dos dois lados da carruagem - embora digam exatamente o mesmo.
Os Smart-Passengers
Vão conectados com o seu iphone ou android gigante com ar executivo e importante, de quem já começou a trabalhar, fazendo gestos rápidos com os dedos no ecrã como quem toma 1000 decisões antes do pequeno-almoço. Mas quando o metro pára numa estação e o silêncio é maior, ouve-se distintamente a musiquinha de fundo do Candy Crush.
Os Bullys
Esperam qualquer oportunidade para poderem despejar nos companheiros do metro a frustração que sentem porque o marido não lhes toca há meses ou não são aumentados há anos. Se alguém lhes toca, pede espaço, passa para se sentar, ou faz algum comentário de forma educada, respondem para o ar de forma embrutecida. Atenção, o segredo da espécie é nunca falar diretamente para a pessoa de quem se estão a queixar. Olham para o oxigénio do metro e falam alto sem encarar ninguém, atirando "há gente muito mal educada" e "o que uma pessoa tem de aturar", por entre alguns desabafos em francês corrente.
Os Acomodados
Tratam o metro por tu. Sentem-se em casa no fundo. Por isso aproveitam aquele tempo para pôr conversas pessoais em dia por telefone, ensinando a todos os passageiros em volta (que no fundo são como família) qual a última discussão com o namorado que as engravidou. Ou limam descontraidamente as unhas e pinçam os pêlos das sobrancelhas, porque um ritual de higiene e beleza está tão bem numa carruagem do metro como na provacidade do seu wc. Privacidade? O que é isso? São cidadãos do mundo.
Porque são egoístas. Porque há vida para além da dos funcionários do Metro de Lisboa e da REFER e da TAP. Porque andamos todos a tinir, não são só eles, com os problemas da crise ou pseudo-crise. Porque por andarmos a tinir não podemos falhar no emprego por não ser possível chegar lá no transporte que pagamos mensalmente. Porque por andarmos a tinir fugimos sem escolha do nosso país e precisamos da bolsa de fôlego que é voltar no Natal e dar um abraço aos que amamos, sem temer que o avião que pagámos com trocos contados há meses afinal não descole. Porque da próxima vez vamos deixar de contar com estas empresas e depois pode ser que elas nem precisem de funcionários. Porque as greves são um direito, mas há muito tempo deixaram de ser solução.