Pessoas que não morrem no dia em que morrem.
Morrem no dia em que desistem de sentir a vida.
Morrem no dia em que o corpo desiste de si.
Não morrem nunca, por mais que deixem de existir.
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Morrem no dia em que desistem de sentir a vida.
Morrem no dia em que o corpo desiste de si.
Não morrem nunca, por mais que deixem de existir.
Os famosos vão morrendo. Têm aquela particularidade chata de continuarem a ser humanos e, portanto, ainda que para nossa incoveniência, são perecíveis e em última instância - às vezes com umas ajudas químicas, outras vezes nem por isso - exalam o último suspiro. E eu nem julgo quem mina as redes sociais de RIP, cenas do ator, músicas do cantor e outros que tais. Certo que há sempre uns que mal conheciam a obra e são carpideiras-surfistas (entram na onda). Seja.
O que me dá torvelinhos no peito, então? Que se diga que está a ser um ano terrível (e ouvi e li tantos desabafos assim desde ontem, com mais uma morte de uma estrela). Um ano terrivel seria que houvesse tal sequência de mortes das que nos doem - ou uma só - e não das que nos chocam. Das que me fazem dizer que quem morre é quem fica vivo, porque quem parte leva consigo para a cova, para o mar onde se espalham as cinzas, para o céu, para o purgatório, para o inferno (cada um acredita no que quiser) um pedaço irrecuperável de nós.
As mortes dos artistas, atletas, figuras públicas, imortais na sua obra, mesmo que todos de enfiada e um por semana, só fazem com que seja um ano terrível, um de cada vez (sem reparar na sequência), para aqueles a quem essa morte dói de facto. E esses não somos nós. Nós abrimos a boca em espanto, sentimos talvez um espasmo de tristeza e a nostalgia abate-se. Mas continuamos inteiros.
Dizem-me que se morrer um dos pais são cinco dias de licença e para "familiares de segundo grau" são dois.
Na lei não está previsto que o avô seja em boa verdade o que se pode chamar de pai ou que a tia tenha criado como mãe. Que os pais tenham tido o papel de dois primos afastados. Ou, ao contrário, que cinco dias não cheguem nem para atar as primeiras pontas de dor, quanto mais a logística dos dias que não param.
A lei deixa-me parar cinco dias por morte de um sogro, mas manda-me enxugar as lágrimas num par de dias se ficar sem irmã. A lei diz que morrer um filho ou uma nora é igual. Diz-me que se morrer um tio ou um sobrinho não preciso de dia nenhum para me refazer do choque. A lei é cega a afetos. Divide o primeiro grau do segundo com a lucidez de uma equação e diz-me que "se x maior que y" o resultado é nulo.
A lei não pode saber se o meu luto se faz de um preto sossegado e inerte, ou se preciso fingir depressa que não se passou nada e voltar à cadência normal dos dias.
A lei generaliza porque tem de generalizar. A nós morrem-nos anos que temos de curar em horas contadas.
Jantamos e conversamos. Eu despenteada, com o cabelo cheio de trejeitos da humidade, e de ar cansado, e ele, por mais que se esfalfe a trabalhar em turnos, e nas máquinas do ginásio, sempre com aquele ar fresco e fofo, giro-sem-esforço (se calhar eu também devia experimentar ser in e fazer a dieta dele - isso e uma operação plástica).
Como estou sempre a inventar, eis a questão que lanço para cima da mesa: se pudessemos escolher uma maneira para morrer, num futuro próximo, excluindo a hipótese "enquanto dormimos", o que escolheríamos.
E enquanto eu estou a formar na cabeça a possibilidade de uma morte através de um veneno de atuação rápida, que nem chegue a fazer uma pessoa bolsar-se e perder a pose, ele diz:
- Escolhia morrer atropelado, a atirar-me para a passadeira para salvar uma criança de um carro a alta velocidade. Eu morro, a criança salva-se.
Dá para acreditar nesta pouca vergonha?!
Não é que a porra do coágulo é coisa séria? Eu juro que tentei não tossir mas, tuberculosa como estava, em determinados momentos foi tal e qual como se me tivessem pedido para não pestanejar (tentem lá isso, por 2 ou 3 dias). Nem sequer foi tosse branda, a noite trazia autênticas sessões de cuspir os pulmões. Portanto espera-me a morte por dente do siso, que ao que parece, é uma realidade - e toda a gente na comunidade dos dentistas sabe que pode acontecer quando se arrancam dentes, mas ninguém avisa o pessoal.
Juro que hoje já senti dois tremeliques na perna e imagino que seja o coágulo que se desprendeu do buraco do siso e me viaja alegremente pela corrente sanguínea até encontrar onde estacionar.
Partlhei com a minha irmã, que se preocupou logo: primeiras para ficar com a tua roupa, livros e computador!
Não costumo ter estes laivos de hipocondria, mas não consigo deixar de rever a imagem do dentista a dizer "se não tossir vai correr tudo bem", sem o ar de gravidade que a situação precisava. Nada que avisasse que era questão de vida ou morte. Soubesse eu e tinha enfiado um pano na boca por três dias, feito um furo na garganta com esferográfica para passar o ar, como fazem nos filmes, induzido anestesia geral, qualquer coisa.
Pronto, era só para desabafar e dizer isto: se morrer, escrevam por mim. Digam que fui uma grande blogger (mintam descaradamente).
O meu avô era benfiquista. Eu não. Sempre fui sportinguista, em movimento contrário a toda a família.
Foi na passagem de ano e muitos anos já passaram. Quando o mundo todo estava a começar de novo, o meu avô acabou.
É incrível como ele tinha quase setenta anos e para mim nunca chegou a ser velho. O meu companheiro de viagens barrigudo, com quem preenchi cadernos de quadras (havia um que tinha capa do Rei Leão, lembras-te mãe? sabes onde está? onde fizemos o relato em verso de uma viagem a Mirandela?).
Não percebi que ele ia morrer - digo assim, sem eufemismos. Não sei quando se tornou suposto que ele deixasse de estar conosco. O meu pai avisou-me. Mas ainda há umas semanas ele tinha visitado a minha casa em Lisboa, eu acabara de me mudar para a capital para estudar e os meus avós vieram ver se a neta mais velha estava bem instalada. O meu avô? Fresco que nem uma alface? Lá por estar no hospital, isso não queria dizer nada. Os médicos nem sabiam bem o que ele tinha. Estava enganado o meu pai. Só que não. Num instante estava a minha mãe coberta de lágrimas a pedir-me que trocasse a camisola cinzenta por outra mais escura. 1 de Janeiro. Não há brilho, nem dourados e o único "novo" deste "ano" é desgosto.
Não fui ao funeral. Tinha idade para isso. Não me arrependo.
Já não estava lá o meu avô e eu não ia conseguir dar alento a ninguém. Disseram-me que não tinha de ir, que podia ficar a tomar conta das mais pequenas. E eu agarrei com dez mãos a oportunidade para não pisotear o meu sofrimento, assistindo a um ritual de morte que considero bárbaro e escusado. Coisas minhas.
O Benfica não ganhava o campeonato há dez anos na altura que o meu avô morreu. Dez. Nessa época, mais tarde, em Maio, sagrou-se novamente campeão. O meu avô não viu. Esperaram os anos certos para não lhe dar mais uma alegria. E é por esta razão perfeitamente irracional e dramática, que jamais conseguirei perdoar o clube encarnado, simpatizar com ele ou apreciar o voo da águia.
Eu avisei que este post não era sobre o Benfica.
Imagine-se uma pessoa que não é amada. Que experimentou um beijo entusiasmado e depois foi fechada numa cela vazia e quieta, sem saber se é para sempre, só com a recordação desse beijo. Por quanto tempo se sentirá viva sem propósito algum?
Não é isso que fazemos aos livros que colecionamos? Lemos todas as páginas, mais sofregamente, ou devagar, a saboreá-las. Depois fechamos a capa, encostamo-los ao peito, felizes pela leitura, tristes porque terminou. Gostámos tanto. Jamais nos poderíamos desfazer dele. Guardamo-lo na prateleira. Não o damos porque já está usado, não o vendemos porque o queremos conosco, não o emprestamos porque sabe Deus que podemos não o ter de volta, não o relemos porque já sabemos a história e gostamos de ser surpreendidos. E ele fica ali arrumado, qual peça decorativa, a ser tocado pelo espanador, volta a abrir-se se alguma vez no meio da limpeza tem a sorte de cair ao chão.
E não me digam que sou ridícula (apesar de ser verdade) e que os livros não têm vida. Quando muito, têm várias.
Então fica a questão: os livros morrem por não serem lidos?
Se assim for, nem toda a gente mata os livros (há quem se desfaça delas, quem os empreste com leveza, quem os releia incontáveis vezes), mas eu mato. E mais assassinos haverá por aí. Penso se serei capaz de deixar de ser egoísta e fazer o melhor pelo espécime em papel. Fazer até uns trocos ou fazer outra pessoa feliz. Mas sobretudo isto: ressuscitar o livro. Ou deixá-lo viver. Ser lido. É a mesma coisa. Está bem, eu vou dormir...
Vi a minha morte de forma claríssima. Sei como vai acontecer e não precisei de nenhuma cigana para me ler a sina.
Pulmão perfurado por uma costela durante um abraço daqueles apertados do Moço.
Não existe.
Portanto, foi complicado o meu pai arranjar a melhor forma de dizer à minha irmã que o nosso cãozinho tinha morrido (a minha mãe diz sempre "falecido", como que a suavizar a coisa).
Reza a lenda que na tarde em que ele a veio buscar a Lisboa e lhe tentou dar a má notícia, ela falou do cão como nunca antes.
Que saudades tenho dele.
Estou ansiosa para chegar a casa e fazer-lhe festinhas
Podemos comprar uma bola saltitona para brincar com o K. que a mãe escondeu-as todas?
Eu teria sugerido uma abordagem do tipo anedótico: A tua família morreu toda. Estava a brincar! Foi só o teu cão! Hahaha.
Mas o meu pai foi um pouco mais brando.
Em todo o caso ainda estava a rapariga num pranto, já em casa, a tentar digerir a notícia, quando para a acalmar os meus pais unem esforços numa conversa deste tipo:
Não fiques assim. Estas coisas fazem parte da vida. Um dia vamos todos morrer e temos de saber lidar com isso. A avó vai morrer, nós vamos morrer...
Conseguiram acalmá-la? Claro que não. Antes apoquentá-la em dobro agora com a perspetiva que toda a sua família morreria e que, seguindo a ordem natural das coisas, ela (a mai-nova) estaria cá para assistir a tudo, com camarote para mortes de entes queridos em cadeia.
Conclusão: não há boas maneiras de se dar más notícias. Mas evitar falar em desgraças futuras talvez seja aconselhável.
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