Saí de casa. 60 dias depois botei o pé na rua. Não fiquei fascinada. Percebi que não me interessa sair sem um objetivo muito específico que é...pois, oiçam. Portanto o passeio durou pouco. Só o suficiente para eu constatar que as minhas pernas ainda funcionam em médias distâncias e para o Moço comentar que ao menos foi bom eu "esticar o pernil".
Ouçam aqui no spotify, ou aqui no castbox (não precisam instalar nada, se não quiserem - ouvem no browser) ou clicando PLAY abaixo.
Não há dúvida nenhuma que um dia, não sabemos quando, isto da pandemia não passará de uma recordação, depois uma história. Também não tenho dúvidas que vamos ganhar alguns hábitos novos que ficam para o futuro - arrisco dizer que algumas pessoas até vão passar a lavar mesmo as mãos quando saem da casa de banho. Tenho mais dúvidas que nos tornemos pessoas melhores, acho que, como sempre, por cada ato de altruísmo, há alguém que leva as latas de atum da prateleira do supermercado todas para sua casa e assim o mundo se equilibra.
Mas até lá o nosso humor vai variando. Na maioria dos dias não ligo a qual será a data de validade do isolamento, só espero que seja superior à da minha farinha que ganhou bicho. Sei que vai ficar tudo bem e, portanto, passo um dia de cada vez, o melhor que posso. Os outros são os dias "era só o que me faltava". Ou, como me lembrei há pouco quando barrei uma bolacha com manteiga de amendoim e ela caiu com o lado pastoso no chão: os dias da Lei de Murphy.
A maior parte das situações que me fazem levar as mãos à cabeça não têm relação direta com a quarentena, mas sei que me apoquentam a uma escala desproporcional por causa dela. E se me apetecer chorar porque a farinha tem bicho (não é corona) e não posso armar-me em pasteleira, quando sei perfeitamente que se não fotografar um bolo o Instagram me bloqueia a conta por violação de normas da comunidade, não tolero que me digam que não tenho razão para isso.
Concluo que lidar com o isolamento é isto. Admitir que de génio e de louco, todos temos um pouco. Menos a parte do génio.
Não falo de problemas menores, como ter saudades da família, falta de acesso a bens essenciais, a quebra da sanidade mental ou situações precárias e sacrifícios vários em nome do bem-estar comum. Falo daquelas situações mesmos graves.
“O meu chefe quer videochamadas diárias.”
Avaria as tuas câmaras para evitar que te vejam. Precisas que seja credível, qualquer martelo com prego, bem assente, resolve o assunto
Guarda apenas uma câmara sã, pode ser um tablet velho, para chamadas ocasionais com familiares ou amigos selecionados. O patronato não pode saber da existência desse último dispositivo se querem continuar a trabalhar sujos, despenteados e nus.
“Eu faço distanciamento quando tenho de sair, mas os outros não. Fui ao supermercado e um velho estava a respirar-me para cima.”
Antes de saíres à rua escreve COVID19 na testa com um marcador preto. Sempre que sentires outros humanos, olha bem em volta para te certificares que te lêem a testa. Em casos mais graves faz um pequeno impulso para a frente e grita “vou-te lamber”.
“Não consigo aturar mais as pessoas que vivem comigo.”
Usa o papel higiénico que acumulaste para construir muralhas e definir espaços para cada um.
“Alguns deles são filhos menores e precisam de mim.”
Da próxima vez que fores deixar compras aos teus pais ou avós que estão em isolamento deixa uma cestinha com os filhos menores ao lado das maçãs. Se já andarem, ata-os ao garrafão de 7lt do Luso. Se mesmo assim conseguirem fugir, também têm bem idade para se safarem sozinhos.
“Sofro muito da cabeça com Tik Toks de pessoas a dançar descoordenadas.”
(Ainda) não fiz pão. Só fui à varanda ler, nada de bater palmas ou fazer música que não gosto de incomodar os vizinhos (e assimcomássim, não tenho a certeza que isso ajude). Não acumulei papel higiénico, nem nenhum género alimentício. Toda a gente quer comprar o que é nosso e eu também, mas o que me apetecia mesmo mesmo era um hambúrguer do Burguer King, com batatas fritas do McDonalds. Não faço encomendas, nem sequer de comida. Não faço treinos de PT nenhum no Instagram (estou a estudar o impacto no ser humano de passar os dias sentada e deitada). Também não vi nenhum live inteiro do Bruno Nogueira (apanho-os sempre a falar do mesmo e deixo o Moço a ver sozinho), nem fiz eu própria nenhum live (o que deve ser ainda mais grave). Não partilhei como estou farta de crianças – ajuda não as ter, nem fui passear o cão – ajuda não o ter. Os meus pais têm cão, mas também não o podem passear porque ele não anda (nem sequer estou a brincar). Não briguei para ser eu levar o lixo (continuo a não gostar, mesmo em tempo de pandemia). Não partilhei fotos de videochamadas, mas juro que já aconteceram algumas e a minha palavra terá de servir. Não organizei as estantes de livros por cores (mas estou a isto – gesto de juntar o polegar ao indicador). Não aproveitei para arrumar gavetas, porque já bem basta ter de limpar a casa. Não criei um podcast, até porque já o tinha.