Na última sexta-feira revi-me num sítio que frequentei duas vezes por semana, por anos a fio. O terminal de expressos de Sete Rios. Sem estar preparada para isso, a nostalgia deu-me uma chapada. O percurso do metro aos Expressos, passando pelas lojinhas da estação, os (mesmos?) pedintes na base das escadas de acesso, os pombos à caça de migalhas, a fila para os bilhetes, a voz "AUTOCARRO CINCO, LINHA SETE", os senhores que parecem todos Toy's com bigode e umas mulheres encasacadas até aos dentes enquanto outras se passeiam descascadas em Havaianas, seja qual for a estação do ano.
Foi-me tudo tão familiar que instintivamente fiz a dobrinha no bilhete para o motorista rasgar a parte lhe pertence com facilidade, contei os lugares mentalmente para saber qual a minha cadeira, mesmo que não veja "onde estão os números" (há 300 maneiras de os colocar, aparentemente, e sempre alguém que vocaliza a pergunta), o medo de que nos levem a mala que ficou lá em baixo, com a portinhola bem aberta até o autocarro arrancar. O wifi que é cem vezes melhor que num Alfa.
Infelizmente uma coisa - a que procurei mais avidamente assim que as recordações me assaltaram, a que só ali tinha a certeza de encontrar sempre - não estava lá. O Dove Caramel no bar do terminal. Assim sendo, acho que não volto tão cedo.
De como é penoso ficar em casa com o sol a bater nas pedras da calçada e não poderes sair te faz querer bater com a cabeça numa?
De teres de acordar de madrugada para estar nas aulas a horas indecentes e te esforçares para segurar os olhos com palitos imaginários?
Dos calhamaços que se carregam para levares nos braços a matéria toda e da vontade de acender um bico do fogão e queimar as páginas uma por uma?
Da vontade que de repente nos dá de limpar a casa, organizar os copos por altura e ver um documentário sobre o ciclo de vida da traça dos tapetes marroquinos?
De nos desconcentrarmos com as coisas mais básicas: como o som da nossa respiração ou de uma mosca que voa na divisão ao lado?
Não deixem de partilhar também as vossas (piores) recordações dos tempos de estudante - ou vivências presentes, se for o caso.
Quando fomos passear a Setúbal encontrei no mercado da terra uma preciosidade: caramelos de pinhão El Caserio. Daqueles de partir os dentes e chorar por mais. Comprei uma macheia, muito feliz, e partilhei com os meus companheiros de viagens. O meu avô trazia-mos de Espanha, quando eu era pequena, e vendiam-se em muitos poucos sítios. Hoje em dia tenho ideia que até há no Continente, em embalagens, mas...não é a mesma coisa (é, mas não é).
O meu Moço viu o encanto de menina que eu trazia nos olhos quando os encontrei no mercado de Setúbal. Então roubou um ao colega que trouxe caramelos de Barcelona e trouxe-mo, para alegrar o meu dia. Abençoado. Trouxe-me sabor a caramelo, a pinhão e às viagens do meu avô.
É Sábado e prepara-se a sopa do costume para o jantar. Desta vez leva feijão verde que se trouxe lá de cima da terra, mais verde, mais aromático, mais tudo. E é quando o começo a cortar e o feijão verde (não a mostarda) me chega ao nariz que me vem à lembrança o meu avô. A horta junto à fonte onde juntos colhíamos o feijão verde e as favas - pelo menos no tempo que eu não perdia a a esconder-me entre e vegetação ou que não estava inclinada a beber a água da fonte. Para mim era uma brincadeira, não era trabalho. E depois, debulhava para um balde preto as favas com a minha avó (também havia ervilhas, lembro-me agora que escrevo sobre isso). E ela - só ela, que eu era pequenina e desajeitada para mexer nas facas - cortava o feijão verde em tiras finas para a sopa.
E agora por causa de estar a fazer a sopa e me cheirar à verdura cortada da minha infância tenho este quente-e-frio no coração. Vou ligar à minha avó e perguntar se ela também se lembra disto. Claro que lembra. Que felizes que fomos com o meu avô.
Penso sempre nisto: que é mais fácil para quem parte (se é que parte para lado algum). Quem fica vivo é que morre. Um pedaço de cada vez. Uma pessoa de cada vez.
Eu já morri por duas vezes. A primeira tirou-me um pedaço gigante. Levou-me uma parte da infância, um colo, viagens de Verão e parceiro para jogar às damas. Nunca mais fui encher os garrafões de água à fonte. Da segunda vez morri menos, mas morri muito naquele abraço interminável de quem morreu inteiro ao ver a sua alma gémea partir.
O autocarro estava muito atrasado e ela não podia esperar mais. Então, mesmo debaixo daquele calor surdo às queixas da velhota sentada à sombra, pôs-se a caminho. Desejou ter calçado saltos altos. Ninguém a percebia, porque é suposto os rasos serem tão mais confortáveis. É que os saltos altos marcam compasso e pontuam a caminhada. E têm o conforto da beleza, que ela tanto quer fingir.
Foi quase sem reparar que reparou. Talvez tenha virado a cabeça para sacudir o cabelo que lhe passeava nos ombros. E viu a entrada para a rua dela. Já não era a rua dela, na verdade. Mas foi por muitos anos. A rua onde reconhecia a porta e subia até ao último andar para o apartamento velho que chamou de casa por uma década. Que partilhou com uma amiga, com ninguém, com a irmã, com o seu amor. Onde recebeu amigos para verem sentados no chão o Portugal x Inglaterra do Euro 2004 e comerem bacalhau com natas como a mãe lhe tinha ensinado a fazer. Onde levou rapazes diferentes para beijos diferentes e desilusões diferentes. Onde chorou, sorriu, deseperou, foi feliz.
Pensou nisto tudo naquela fração de segundo em que reparou na rua. Talvez tenha virado a cabeça para sacudir o cabelo que lhe passeava nos ombros. O calor não dava descanso e ela não dava descanso aos sapatos rasos, que deviam ter salto alto, para lhe marcar o compasso e pontuar a caminhada. Já estava atrasada. Que a vida não pára.