Não digam a ninguém, que eu sei que é pecado.
Odiei o filme da Amélie mais o seu destino fabuloso.
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Odiei o filme da Amélie mais o seu destino fabuloso.
Numa das passagens que mais me marcou de um livro que li recentemente (não digo qual) há um segredo que Anna conta ao ouvido da filha.
O cenário é o da 2º guerra mundial, na Polónia. A familia é judia, estão reunidos num gueto e nessa manhã há movimentações alemãs que fazem acreditar que os vão levar dali para pior. O marido de Anna fica a dar a cara aos alemães que invadem a sua privacidade para levarem toda a gente que encontrem, enquanto elas se escondem do lado de fora. "Elas" são: Anna e a sua filha já maior, que por sua vez tem a sua criança nos braços e outra amiga. Os alemães levam o pai de família sem piedade - adivinha-se que o destino será qualquer coisa entre um campo de trabalho forçado e a morte. Elas encolhem-se e livram-se da inspeção. Ainda não foi daquela vez que as arrastaram. É então que Anna se levanta e se prepara para se juntar ao marido, aquele a quem um dia terá dito "até que a morte nos separe". A filha agarra-a por um braço, em protesto. Então Anna segreda-lhe algo. E a resistência da filha quebra-se até que liberta a mãe. Esta encaminha-se para o seu destino, seja ele qual for, mas ao lado do homem que ama.
O que terá Anna dito ao ouvido da filha?
Suava das mãos na imagem menos bonita que possam imaginar. Estava nervosa porque ia perder alguma coisa: o segredo que andava a guardar. Escreveu-o numa carta de si para si. Queria lembrar-se mais tarde do que sentia enquanto o segredo era só dela. E daí talvez nunca o relesse. Mas ja tinha uma bigorna em cima do peito, com todo o peso com que parecem cair nos desenhos animados. Estava na hora de matar aquele segredo. De o perder para sempre. De deixar de o chamar assim.
Two can keep a secret if one of them is dead. A música repetia-se incessantemente na sua cabeça enquanto esperava a hora do encontro com o assassino do seu segredo.
O medo estava a tomar conta do seu corpo. Tomou um chá trémulo e saiu.
Era primavera e o sol já tinha decidido não se esconder mais. A dona Rosalina, com a neta gorduchinha pela mão, dirigiu-lhe um aceno, como quem diz boa tarde. O senhor Júlio do mini-mercado - o que nunca a deixava sair de lá com um queijo sem lhe ensinar a parti-lo uma e outra vez ("tem de ir ao centro, a menina"), com a seriedade de quem ensina equações - fumava à porta, cofiando o bigode. Os carros passavam, sempre mais depressa do que deviam. Que falta de respeito, o mundo não parar enquanto ela vivia com aquele segredo. Que desplante o da dona Rosalina a passear com a neta, o Sr.Júlio a fumar descontraidamente, o sol a brilhar, os carros sem travar. Que desplante seguirem todos com a vida e ela sem saber o que fazer, a querer pressionar o botão da pausa a todo o custo.
Caminhou até ao banco de jardim do costume. Aquele em que se sentava com ele, já em criança, quando trocavam desenhos, as bicicletas encostadas à árvore a tentar não cair. O assassino do seu segredo seria o menino-já-homem com quem tinha trocado o primeiro beijo. E o último.
Foi um erro. Encontraram-se por acaso: voltei a morar aqui, disse ele. Estava na antiga casa dos pais, agora restaurada. E ela estava numa ao pé, da dele e da dos pais. Na rua que era de todos, do outro lado do jardim onde estava o banco deles.
Trocaram simpatias. Trocaram novidades. Trocaram o primeiro beijo sem as bochechas quentes de terem corrido pelo parque nos minutos anteriores. Trocaram-se. Foi um erro.
O coração dela era uma lebre irrequieta: pulava-lhe do estômago à garganta. Viu-o chegar. Não o deixou falar e fez morrer logo ali o segredo. Pegou-lhe na mão: estou grávida.
E ele esboçou um sorriso desorientado. Abraçou-a para sempre. Foi só uma noite depois de uma vida e foi uma noite que valeu uma vida.
E o coração dela passou de lebre a tartaruga. Acalmou-se, voltou ao compasso normal. O segredo estava morto.
[Obrigada Homem Certo por me teres posto a pensar nisto dos segredos que se perdem.]
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