Digam-me se é só comigo que isto se passa. Ter horas ou dias que não partilho com mais ninguém é tão essencial quanto estar rodeada de amigos e família, ou estar com o meu favorito das horas todas que é o Moço.
A solidão forçada é um mal que faz doer, mas não conseguir momento feitos só de nós mesmos, para nada em particular, só para sermos sem mais ninguém, é igualmente penoso. É nesses momentos que refletimos ou, por outro lado, deixamos completamente de refletir, porque não há ninguém a considerar. O que melhor nos aprouver nesse momento da nossa vida em particular. Dançar de cuecas, babar na almofada, ou fazer as mesmas coisas de todos os dias, mas só conosco.
Seja qual for a explicação, preciso disso como de água para beber. E da mesma maneira que me esqueço da segunda, às vezes também me esqueço da primeira.
Estou no parque e tenho livros e pombos por companhia. Só penso como é bom estar sozinha. E - céus - como seria infinitamente melhor estar acompanhada. É que sem querer desdizer os livros que trouxe (e até já li) ou os pombos que se passeiam com vagar (que por uma vez até estão no sítio certo), nenhum deles me pergunta porque é que eu vim sozinha para aqui. Nem é a conversa que me faz falta. Que eu palavras só para mim tenho muitas. É o cuidado que nenhum deles tem comigo. Tenho saudades tuas.
Ia tão carregada, a dor de cabeça a pingar-me na cabeça (plim plim plim), que me sentei nos lugares reservados a grávidas e deficientes (não havia nenhum à vista). Na paragem a seguir vem a senhora com um casaco de inverno muito quente, logo hoje que o calor nos serve de gola alta, e senta-se ao meu lado. Estamos as duas de costas para a estrada, mas eu vou com tudo em cima e mais um livro onde repouso a vista - não a concentração. Então é para a vizinha da frente que a velhota fala:
Vai chover que eu sei. Veja essas nuvens. E eu sinto-me tonta, sei bem que o tempo vai mudar. O Verão já vai a meio sabe? [sem resposta] Estamos em Julho. Sete meses do ano já passaram. Faltam cinco. Foram sete, faltam cinco e estamos em Dezembro. Mais um pouco e estamos na passagem de ano. Mais um ano. Acho muito mal agora o que fazem as pessoas que morrem. Que as queimam, sabe? [sem resposta] Um enterro já é uma coisa má, mas queimar as pessoas? Eu não quero. Acho horrível, mas é o que se faz agora. Mas pronto, mesmo quem é enterrado ao fim de cinco anos é levado do cemitério. Cinco anos, não é? [sem resposta] E passou Julho. Passaram sete meses. Mais cinco e faz outro ano. Vou sair aqui. Bom dia. [sem resposta]
Quem a ouvisse percebia que, de facto, já estamos a mais de metade do ano, que o tempo talvez vá mudar, que a senhora não quer ser cremada, mas no fundo não acha boa nenhuma das opções para a morte. Quem a ouvisse bem, do lado de dentro das palavras, percebia que ela se sente muito sozinha, que anda a fazer as contas à vida há muito tempo, na esperança de virar mais um, mas que há-de querer, quando o ano não virar outra vez, alguém que lhe leve flores durante muito tempo.
Eu levantei os olhos do livro e olhei para ela: bom dia.
Ali estava ela, na janela do 5ºB, a olhar para o mundo que se estendia à sua frente a partir de Lisboa. Que pequena que era. Que sozinha que estava. Toda a gente tinha alguém. Estavam de férias com as caras-metades ou aquele grupo de amigos inseparável. Toda a gente tinha um programa mais interessante do que estar à janela naquele domingo ameno. Só ela é que não.
Então tinha tempo para maldizer a sua vida cinzenta. Mesmo que em todos os dias da semana,a todos os que se cruzassem com ela, mostrasse uma montra colorida, em forma de sorriso. O "como estás" responde-se automaticamente com "bem", o "está tudo bem" responde-se automaticamente com "sim". E de resposta correta (mas incompleta) em resposta correta (mas incompleta) se constrói uma fachada pintada de fresco em cima de paredes de cimento áspero.
Não é que não fosse genericamente feliz, que não tivesse amigos do peito, uma família quente de ternura. Mas o que lhes diria? Que não, não estava bem. Que sentia que todos eram mais do que ela, mesmo que ela soubesse que era tanto como os outros? E que importância tinha isso ao pé de quem não tem saúde ou comida suficiente todos os dias?
E era uma pena que estivesse ali sozinha, sabendo que tinha tanto para dar. Podia ser engraçada, espirituosa, inteligente, uma de cada vez ou todas ao mesmo tempo. Era um desperdício que tivesse aquele cabelo sedoso, que entraçava sozinha, e ninguém que o percorresse com os dedos, a acompanhar com uma declaração de amor.
O mundo tão grande e ela tão pequena. Toda a gente acompanhada e ela sozinha. Com um suspiro, fartou-se de estar a janela a pensar no que não tinha e virou-se soltando alguma folhas secas da planta que mantinha no parapeito da janela, sem regar.
No 3ºB estava o Eduardo à janela. Viu as folhas secas a cair à sua frente, sem interromper os seus pensamentos. A sua mágoa por ser o único a estar sozinho no mundo.
No outro lado da rua a Sofia pensava exatamente o mesmo. Como o Tomás, em Viseu. A Catarina, em Évora. O Pierre, em Lyon. A Johanna, na Suécia. O Matthew, em Los Angeles. O Marcos, no Brasil.
Eu nem gosto de almoçar sozinha, portanto podem adivinhar a minha opinião imediata sobre este assunto. Será uma questão de feitio. Mesmo com um livro por companhia, ou o telemóvel ligado ao mundo na ponta dos dedos, trinco tudo a despachar. Uma refeição que se faz sozinho, alimenta-nos. Uma refeição que se faz acompanhado, satisfaz-nos.
Assim é comigo e com as viagens. A experiência ajusta-se à medida das pessoas com quem a partilho e cresce proporcionalmente em prazer.
Aconteceu ir a Londres a trabalho, sozinha, e ficar mais um par de dias para passear e conhecer a cidade, oportunidade que as horas em reuniões me tinham roubado já umas quantas vezes. Tinha lá alguns conhecidos, amigos de ocasião, que poderia ter desafiado para passear comigo, mas decidi desafiar-me a mim mesma e explorar a cidade ao meu ritmo. Senti-me completa e não houve um minuto em que me parecesse que precisava ali de alguém para aproveitar aquela cidade cinzenta e multicultural. Não precisava, mas queria. Como não preciso de mais ninguém para ser inteira na vida, mas quero ter ao meu lado amigos, família, o meu companheiro para sempre. Porque as caminhadas, literais e metafóricas, se fazem mais ligeiras e felizes quando há passos que acompanham os nossos.
Às vezes, nem precisamos de alguém para continuar a andar, precisamos de alguém com quem parar um pouco.