Não é um erro de digitação, é isso mesmo. Abaixo a ditadura da felicidade em frases feitas.
Nunca nos deixam olhar o lado lunar em paz. Quando as coisas correm bem não nos podemos queixar. Quando correm mal há sempre quem esteja pior. Quando o que passamos é mesmo assim a tender para o pior temos de nos contentar na mesma com a ideia de que nos torna mais fortes ou que depois da tempestade vem a bonança e portanto temos de estar felizes por esta magnífica fase de viragem.
Ora porra, em teoria sabemos isso tudo. Mas deixem chorar, deixem entristecer, deixem dar corpo à dor por um bocadinho. Se não tivermos medo dela, se não a reprimirmos, se aceitarmos as coisas más como um facto e não fizermos delas um bicho papão dentro da arca do sotão, se soubermos que não faz mal que nos sintamos mal de vez em quando (mesmo que o nosso problema seja muito relativo ao pé dos meninos em Àfrca a morrer) talvez possamos ver a normalidade da coisa e tornar tudo menos gigante.
O que não nos mata, deixa-nos fartos. E desde que nos fartemos das coisas beras e não de nós, está tudo bem.
Talvez a infelicidade seja o lugar mais confortável para a alma, concluo depois de anos e anos de ponderação. Tenho visto como nela se encosta muita gente sem dor concreta que se imponha, sem facto objetivo que a cause. Culpa, remorso, medo, sentido extremo de um dever imaginário, fantasiado pelo receio de perder o comboio, a confiança, o norte, o respeito. Vejo tudo isso naqueles que não escolhem senão permanecer no que são.
Doem os dentes que começam a rebentar na boca do bebé de meses. Dói à cabeça à estudante de direta que tem de decorar 600 páginas de vocábulos impossíveis. Dói o músculo cansado de quarenta minutos de cycling no ginásio. Doem no lombo as horas extraordinárias de trabalho do motorista dos expressos. Dói o diafragma do saxofonista que acaba o concerto da sua vida. Doem as contrações na fase final final da gravidez - e os pés inchados, senhor, durante os nove meses. Doem os braços de carregar as malas até ao hotel que marcamos naquela cidade onde vamos passear uns dias e fica longe da estação. Dói o coração outra vez desfeito da nossa amiga.
Às vezes - muitas vezes - não faz mal termos de nos enroscar em nós mesmos e gemer até àquele momento distante (seja dali a meia hora ou meio ano) em que a dor passa. Porque às vezes - muitas vezes - a seguir à dor a vida traz um analgésico muito mais poderoso. Porque às vezes - muitas vezes - sem essa dor não saberíamos o sabor do alívio. E sempre - não só as vezes - a dor faz-nos crescer.
Terá sido a frase que o meu pai mais vezes me repetiu face às minhas investidas de chica-esperta. Falo sempre muito assertiva, como quem conhece os cantos ao mundo - isto para aí desde que aprendi a dizer frases inteiras e o Sr.Zé do café da rotunda me chamou grafonola. É difícil que quem me ouve não ache que eu sei do que estou a falar só pela segurança com que o digo, mas o meu pai nunca se deixou enganar: tu não sabes o que é a vida.
Ocorreu-me no outro dia, que finalmente sei o que ele queria dizer - e, caramba levou-me 28 anos e um período reforçado de trágico-comédias para perceber isto. Levou-me 28 anos para chegar a este estado de alerta geral: em todos os minutos carrego todas as responsabilidades do mundo. E o grande segredo de se ser adulto é ter este estado de consciência que pesa mais do que todos os quilos que tenho no corpo, e ao mesmo tempo seguir com a vida. Ser feliz apesar da mochila das preocupações nos estar colada ao corpo, porque a tiracolo levamos a bolsa de ânimo. Não podemos largar nenhuma.
Não há pausas nem intervalos para encontrar a alegria por entre a confusão. Não há uma hora para sorrir e outra para chorar: todas as horas são de tudo ao mesmo tempo. Otimismo e pessimismo são conceitos que se confundem e deixam de fazer sentido: é a realidade que nos alimenta e nos faz crescer.