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Maria das Palavras

A blogger menos in do pedaço, a destruir mitos urbanos desde 1986. Prazer.

18
Fev15

Gira-discos

Maria das Palavras

O Miguel já estava a ficar crescido demais. Dava uns passitos trôpegos, qual potro desajeitado, mas lá se equilibrava, normalmente agarrado ao joelho da mãe. 

- Não mexas aí Miguel. Não.

Tão crescido e já com tanto do mundo ao alcance que chegava ao velho gira-discos. Como explicar-lhe que ninguém devia tocar ali?

O marido entrou deu-lhe um beijo na testa e fez o Miguel voar pela sala. Risos que encheram a sala, até sobrar espaço só para os três e mais ninguém. Sem ser o pai biológico do seu pequeno potro, o Casimiro era o melhor pai que lhe conseguiria dar até ao fim dos seus dias, sabia disso. Era também o marido perfeito no papel. O amigo perfeito no seu coração.

Entrou na sua vida no momento errado, para fazer com que tudo desse certo. Começou por acompanhá-la na gravidez, como seu médico. Passou a acompanhá-la na vida, como seu marido. Trouxe o Miguel ao mundo. Mais pai que tantos pais. 

 

- Tens de arrumar isso.

Dizia ele muitas vezes acerca do gira-discos.

 

 

Gira-discos - Maria das Palavras

 

O gira-discos foi tudo o que sobrou do seu primeiro casamento, com o pai do Miguel. E só olhar para ele invocava os momentos intensos que tinham passado juntos. Intensidade era a palavra certa. Um cavalheiro à moda antiga que lhe abria a porta do carro e lhe dava passagem no elevador. Que a levou a jantar à luz das velas. Que dançou com ela em lençois de cetim. Que muitas, muitas vezes dançou com ela ao som daquele gira-discos. The way you look tonight, cantava invariavelmente Sinatra. E ela, que jurava a pés juntos que não sabia dançar, deslizava com a mão dele pela cintura e pisava todos os acordes da música no momento certo.

 

Houve uma noite de Dezembro em que ele lhe trouxe um vestido vermelho para estrear, que lhe marcava a cintura, mas lhe libertava os movimentos de bailarina. Bailarina só para ele, só com ele. Deixou-a aprontar-se até ao toque de perfume e colocou-lhe um colar lindo de brilhantes ao pescoço. Ela estremeceu com a beleza da jóia, que ele disse ser incomparável à dela. E ainda antes de sairem para jantar, antes de dançarem a música deles mais uma vez ao fim da noite, ele completou o conjunto com um anel de noivado.

Na noite que antecedera o casamento, dançaram em cima da sorte e do azar. Passaram a noite juntos - eles e o gira-discos.

E ela não sabe ao certo quando foi que a paixão dos passos de dança, se transfigurou noutro tipo de paixão. Quando foi que os beijos que lhe mordiam, passaram a arrancar pedaços dela.

 

O marido foi adormecer o Miguel e ela ficou a sós com o gira-discos e com os seus pensamentos. Deixou mais uma lágrima correr-lhe pelo rosto. Depois outra. Depois muitas. Sem compasso. Silenciosas. 

 

Naquela noite a música parou abruptamente, mesmo tendo continuado a tocar muito tempo. Tempo demais. Até nascer o Miguel.
Ele não tinha bebido - ele não bebia. Mas estava inebriado com ciúmes sem razão de ser. E ela experimentou-lhe a palma da mão no rosto que ele antes só beijava. A pauta desfez-se em linhas tortas. Para sempre.

Muitos foram os tangos em fúria a partir dessa noite. Muitos foram os pedidos de ajuda que se silenciaram e morreram nos seus lábios.


O marido voltou à sala para a encontrar, por mais um vez, a soluçar com as memórias do passado. Para mais uma vez a ameaçar que se livraria daquilo. Para mais uma vez ela chorar mais só com essa ideia. Para mais uma vez, como na primeira, quando ele percebeu o que se passava, lhe dar o abraço mais protetor que ela alguma vez sentira. Um carinho envolvente, que de fato, ela não conhecera antes, enquanto sapateava numa relação sem limites. 


Ele pensava que eram só as más recordações que a faziam soluçar. Quando a verdadeira razão para ela se manter ligada ao gira-discos e não se conseguir desfazer dele, a verdadeira razão por que chorava...era o amor que havia sentido e perdido. Uma intensidade nunca recuperada. Uma paixão arrebatadora que transbordava no velho gira-discos. Uma paixão já sem palco.
Ela nunca o punha a tocar. O gira-discos nunca tocou depois daquela primeira bofetada. Continuava a ser  tradução perfeita, imaculada, do amor mais forte que ela sentira. 

 

Só no momento em que ela conseguisse perceber que o amor era uma coisa diferente se conseguiria desfazer dele. Talvez quando deixasse o seu marido entrar verdadeiramente nas mágoas que escondia no peito e curá-la - sem os seus dons de médico, com os seus dons de humano. Entretanto, não o voltaria a pôr a tocar. Porque, isso ela já sabia bem, há músicas que não se devem dançar.

 

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04
Fev15

Felizes para sempre

Maria das Palavras

O vestido não era aquele. Era o primeiro. Ela sabia que era o primeiro que tinha experimentado.

 

A mãe disse-lhe que tinha demasiada roda, a sua melhor amiga de sempre disse que o corpete estava muito justo. Mas era com aquele vestido que nem sequer lhe assentava assim tão bem que ela sentia que podia ser feliz no dia marcado. Caminhar até ao altar com olhos de juízo sobre ela. Arrastar a cauda por entre as mesas dos convidados. Dançar até cair. 

 

Pediu ajuda para desapertar o vestido de cauda de sereia que envergava agora. O que era como uma luva no seu corpo, mas ela não sentia seu. O tom deste vestido era quase cinzento. Uma sombra.Sem mais sombras.

 

- Filha, vamos embora?

 

Que disparate, o vestido ainda não estava escolhido. Pois se não a deixavam levar o primeiro e nenhum dos outros lhe agradava, a tarde ainda não estava feita. Teimosa que era.

 

Mas ele sempre gostou disso. Queria aliás casar-se com aquela casmurra, que não escondia que o era. Ficou apresentada logo no primeiro jantar. Rejeitou as tentativas dele que a queria levar a um restaurante panorâmico junto ao castelo. Tão cliché! Insistiu na pizzaria do bairro onde acabaram a comer mal e a pagar bem. E ela mastigava cada bocado de mozzarella quase crua com fingida satisfação - eu gosto assim! dizia ela. Não gostava, claro. Riram-se disso mais tarde. Riram-se disso a cada ano naquela data. No ano seguinte, no restaurante panorâmico a que ele queria tê-la levado. Dois anos depois, a brindar à casa que tinham acabado de comprar. No outro a seguir, já meses depois de descobrirem a doença que o estava a comer, mas com acompanhamento de sorrisos esperançosos - ele careca, ela com o cabelo mais curto que alguma vez tinha usado. E no ano anterior, com um pedido de casamento a acompanhar - o anel na taça de champanhe. O primeiro cliché que a fez assim tão feliz.

Vestidos de Noiva

 

A senhora da loja, paciente, trouxe mais alguns vestidos, parecidos com o primeiro que ela tinha adorado. Não sugeriu fazer arranjos no primeiro, mas continuou a trazer-lhe vestidos com saia volumosa.

 

A mãe e a amiga, sentadas. Não tão pacientes. A perguntar-lhe se não chegava já.

Ela, de sorriso aberto, a rodar a aliança no dedo, entusiasmada com a descoberta de cada tecido, renda, corte. 

- E os véus? Posso experimentar com este vestido? Quero ver como fica de véu e grinalda.

 

O Luís dizia-lhe todos os dias como a queria ver de véu e grinalda. Mais uma expressão cliché.
Ele era tão cheio de clichés e ela amava-o tanto. Não se imaginava a passar a vida com ninguém mais, por mais original, diferente, excêntrico que fosse. Ele passava-lhe os lábios ao de leve na face e perguntava num sussurro "quando é que te vejo de véu e grinalda?".
Os planos para o casamento iam ficando para trás, à medida que era a doença que avançava.

 

Não fazia mal. Enfrentariam tudo. Venceriam tudo. Seriam felizes para sempre.
Mesmo agora que ele já não estava, ela sentia que o amor deles tinha sido para sempre. Naquela mão cheia de anos tinham sido felizes para sempre.

 

Não mudaria nada. Nem aquele primeiro jantar intragável. Nem aquela visita à loja de vestidos, já fora de tempo. Ele queria vê-la de véu e grinalda. E ela sabia que ele estava a olhar.

 

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20
Jan15

Atirei o pau ao gato

Maria das Palavras

A Carolina veio a cantarolar da escola. Que canção é essa, filha? perguntei-lhe eu. E ela repetiu:


"Não atires o pau ao gato-to-to, porque isso-so não se faz-faz-faz...minha mãe-mãe-mãe, ensinou-me-me, a gostar, a gostar dos animais! MIAAAUUU!!"

Já não se atira o pau ao gato. 

Pedi-lhe que se chegasse ao pé de mim e fiz-lhe uma trança no cabelo. Perguntei-lhe se tinha fome. Nunca tem fome. Desde que o irmão perdeu o apetite ela também. Tão pequena. Sentei-a a ver televisão com uma taça de cereais.

Preparei o tabuleiro com o lanche para levar ao Manel e bati ao de leve na porta do quarto. Às vezes prefiro que ele não oiça, para não me mandar embora antes de eu ter oportunidade de entrar. Está com o livro aberto na mesma página. Sempre na mesma página. Quer que eu acredite que lê. 
Deixo-lhe o tabuleiro ao lado. Nenhuma palavra. Passo o polegar ao de leve na sua bochecha encarnada. Reparo que o cotovelo está menos inchado mas não lhe toco mais. Pego num livro, sento-me aos pés da cama e espero que ele coma qualquer coisa. Sei que ele o fará para não me preocupar ainda mais. Mas só se eu estiver ali.

Ele deixa de fingir que lê e eu começo a fingir que leio. Mas pelo canto do olho estou antes a vê-lo pegar na comida aos poucos e mastigar. Corta a sandes nas mãos e depois leva à boca. Já não geme ao trincar. Eu já não choro ao ouvi-lo gemer.

 

Tenho de me lembrar de virar a página. Só de vez em quando.

Quando recebi aquela chamada para o ir buscar - ao hospital não à escola - num segundo tudo fez sentido. A recusa dele em voltar para as aulas a cada Setembro. Neste último em especial. O grupo de rapazes (e não, não eram só rapazes) que o fazia desviar-se para o outro lado do passeio quando o deixava de carro do lado certo da escola. Não era "coisa de criança", como dizia a mim mesma. 


Vira a página.

Serei má mãe por não reparado. Já pensei nisso muitas vezes. Não me vou enganar, é tudo o que penso.
Também é o que os outros pensam. Também é o que o Carlos pensa. Eu é que o ia levar à escola. Eu é que o ajudava a preparar-se de manhã e lhe ouvia os protestos. Eu é que devia saber.

Mas como poderia eu saber, que num mundo em que já nem se atira o pau ao gato, as crianças seria violentas a este ponto umas com as outras? Não foi por isso que mudaram a canção?

Já nem se atira o pau ao gato.


Vira a página.

 

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22
Dez14

Sozinho em Casa

Maria das Palavras

Este ano o filho não pode vir. Por causa do trabalho, como disse ao telefone já há um par de semanas, da última vez que lhe ligou para saber como estava de saúde. Ajeitou novamente o lume, com os cepos que lhe restavam da última volta que deu no pinhal ao pé de casa. Estava muito frio para voltar lá agora. E o filho do Cristovão que às vezes trazia lenha também para ele, já não visitava os pais também fazia uns meses - as viagens à terra estão cada vez mais caras. 
A televisão estava desligada. O Natal dos Hospitais já não tinha ninguém que conhecesse e também já não tinha a sua Lucinda ao lado a dar-lhe cotoveladas para reparar no vestido desta e daquela cantora. Há tempo demais que ninguém lhe dava uma cotovelada. 
Quase podia ouvir ainda a chaleira a chiar e ela ainda tão novinha a perguntar ao pai se também aceitava uma chávena. O sr.Aníbal da drogaria mandara-o entregar uns cartuchos para a caça lá em casa do Doutor. O Doutor recebeu-o com um sorriso e chamou a Lucinda, a filha, para fazer um chá ao rapaz, que era ele. E ele viu-a e soube com a certeza dos loucos: havia de casar com ela. Havia de passar com ela o resto dos seus dias - cotoveladas e tudo. Não fosse a vida ter-lhe pregado a rasteira de a levar tão cedo, cedo demais. Quase sentia o aroma do chá de limão, que ela lhe preparava sempre.

- Sr.José, o seu chá está pronto.

A senhora da bata azul passou pela porta e interrompeu-lhe os pensamentos. Pousou o chá na mesinha ao lado dele. Que estava aquela jovem ali a fazer?
Às vezes baralhava-se. Perdia a noção por um segundo. A "jovem" era uma senhora nos seus avançados cinquentas, que trabalhava para a associação local. O filho pagava a mensalidade que lhe dava direito às refeições, às limpezas, enfim, aos cuidados que podem ser os estranhos a dar.

- Deixei-lhe tudo pronto e acrescentei umas rabanadas ao menu do costume. Não se esqueça que amanhã não passa cá ninguém. Se precisar de alguma coisa tem o nosso número ao pé do telefone. Boas festas.

Ligou a televisão sem ele pedir. E pregou-lhe um beijo na testa antes de sair. O atrevimento! A Lucinda haveria de lhe contar das boas, se pudesse ver aquilo. 
Olhou pela janela e viu a moça a afastar-se. Ao longe casas iluminadas, mais do que o costume. Lembrou-se. Era Natal. Contava oitenta e três Natais. E, sozinho em casa, pedia a Deus que não tivesse de contar mais nenhum.

 

Imagem Internet

 

Fala-se em Sozinho em Casa no Natal e todos temos a imagem do Macaulay Culkin e dos bandidos trapalhões na cabeça. E esquecemo-nos de desejar que fosse esse o único "sozinho em casa" associado a esta quadra. O único filme muito visto. Partilhem. Pode ser que toque a consciência de alguém que possa fazer a diferença.

 

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