A impossibilidade de separar o trigo do joio.
Quando a aleatoriedade do Universo (ou Deus, se preferirem) me fez existir, esqueceu-se de me por num berço dourado. Pôs-me num berço fofo com bordados à mão da minha avó, rodeado de carinho e boa vontade e isso já não foi nada mau, dizem as boas línguas que até será melhor. Mas de ouro, só mesmo umas pulseiritas finas no batizado e um fio daqueles com o primeiro dente que me caiu atarrachado que me ensinaram a estimar como um tesouro e por isso permaneceram sempre guardados.
Talvez seja por isso que consigo apreciar pequenas vitórias como poder ir ao supermercado e comprar pacotes de bolachas que não estavam na lista. Lembro-me muitas vezes, enquanto encho o cesto ou o carrinho, que nem toda a gente o pode fazer. Juro que lembro.
E talvez pouca gente acredite nisso, porque se houver alguém a pedir para uma iniciativa qualquer que não conheço (crianças, idosos, doentes, animais abandonados, piolho dos cactos...) à porta desse mesmo supermercado, nego a ajuda sem pudor. Isso não está relacionado com egoísmo puro, ou a impossibilidade de contribuir para todas as causas: tem a ver com descrença. Não sei quem organizou aquilo e para onde vai.
A não ser que reconheça muito bem a entidade/instituição (Banco Alimentar, Operação Nariz Vermelho, e poucas outras) não penso duas vezes antes de recusar. Mesmo a essas prefiro dar de forma organizada, quando posso, por via online, em vez de em emboscadas locais. E peço imensa desculpa por isso, por esta veia de São Tomé, que certamente me impede às vezes de contribuir para causas legitimas, dentro das minhas possibilidades. Mas a verdade é que a honestidade é cada vez mais rara. Raríssima.