Quando a aleatoriedade do Universo (ou Deus, se preferirem) me fez existir, esqueceu-se de me por num berço dourado. Pôs-me num berço fofo com bordados à mão da minha avó, rodeado de carinho e boa vontade e isso já não foi nada mau, dizem as boas línguas que até será melhor. Mas de ouro, só mesmo umas pulseiritas finas no batizado e um fio daqueles com o primeiro dente que me caiu atarrachado que me ensinaram a estimar como um tesouro e por isso permaneceram sempre guardados.
Talvez seja por isso que consigo apreciar pequenas vitórias como poder ir ao supermercado e comprar pacotes de bolachas que não estavam na lista. Lembro-me muitas vezes, enquanto encho o cesto ou o carrinho, que nem toda a gente o pode fazer. Juro que lembro.
E talvez pouca gente acredite nisso, porque se houver alguém a pedir para uma iniciativa qualquer que não conheço (crianças, idosos, doentes, animais abandonados, piolho dos cactos...) à porta desse mesmo supermercado, nego a ajuda sem pudor. Isso não está relacionado com egoísmo puro, ou a impossibilidade de contribuir para todas as causas: tem a ver com descrença. Não sei quem organizou aquilo e para onde vai.
A não ser que reconheça muito bem a entidade/instituição (Banco Alimentar, Operação Nariz Vermelho, e poucas outras) não penso duas vezes antes de recusar. Mesmo a essas prefiro dar de forma organizada, quando posso, por via online, em vez de em emboscadas locais. E peço imensa desculpa por isso, por esta veia de São Tomé, que certamente me impede às vezes de contribuir para causas legitimas, dentro das minhas possibilidades. Mas a verdade é que a honestidade é cada vez mais rara. Raríssima.
O Moço acaba de me passar a bola no supermercado para ser eu a negar 1€ para a intituição qualquer-coisa. Coisa que faço com algum desprendimento, confesso, mas repreendo-o por me ter posto nessa posição.
Moço: Sabes que eu gosto de ajudar...
Maria: O cesto de roupa suja lá em casa diz-me o contrário.
Neste caso juntam-se várias pessoas com gosto pela leitura, na pequena localidade de Fajã de Ovelha, e os livros são poucos (menos que os leitores). Juntem-se a esta iniciativa da Magda e enviem alguns dos vossos livros parados para estes leitores da Madeira (parece que gostam de romances por lá). Eu vou fazê-lo. Lembram-se de eu falar sobre os livros que morrem nas estantes? Estes vão renascer, para os lados da Calheta.
Somos mesmo muito fortes nisto: passatempos (grátis até injeções na testa) e solidariedade (hoje és tu a precisar, amanhã posso ser eu, porra, deixa-me contribuir - e o porra é assim dito com tom agudo). Portanto se não pensarmos em fado, Fátima, futebol e alcovitar, aqui está algo que combina as duas coisas que os tugas mais gostam.
Há mais de um mês selecionei roupa para dar. Peças de meia-estação, em bom estado, que não uso já há umas três meias-estações. A junta de freguesia fica a distância a pé da minha casa e tem um depósito de roupa para solidariedade.
Primeiro, tinha o saco de roupa no quarto, junto à cama, mas nunca me lembrava de pegar nele ao sair. Então, há um par de semanas, levei-o para a entrada da porta. Mesmo assim, nunca me parece o momento certo: agora vou com pressa, há bocado já ia carregada, vou para a direção contrária...há sempre qualquer coisa.
Hoje pensei para comigo: não vou adiar mais, que a porra do saco aqui no meio do caminho já me está a incomodar.
Viram o que eu fiz? Pensei em mim. Centrei-me no meu problema, que é o saco que já não posso ver à frente lá por casa. Não nas pessoas que, às tantas, tinham agradecido já ter usado uma destas peças de roupa. O melhor é admitir já também que o que me levou a dar roupa foi a falta de espaço nos armários lá de casa, não a falta de roupa nos armários dos outros. Eu avisei. Ser solidário não é o mesmo que ser boa pessoa. Dar e d(escentr)ar são coisas diferentes. Não me chicoteio, mas aprendo. Para a próxima serei melhor. Já é qualquer coisa.
Tenho um pequeno baque no peito de cada vez que oiço ou leio alguém a dizer que ainda não comprou uma única prenda de Natal. Faltam 6 dias - a opção online deixou de ser válida e ninguém tem saúde para andar agora em centros comerciais. Tem?