Estamos a conversar, eu, o Moço e uma prima dele, quando ele espirra e explica que ainda está a recuperar de uma gripe terrível de que foi vítima na semana passada.
Maria: Não foi bem uma gripe, foi só mesmo uma constipação.
E para quem achasse que isto não era suficiente, a minha irmã fez-me o relato de uma das suas visitas ao hospital a meio da semana.
O meu pai, pediu-lhe que lhe levasse um livro, já a que a estadia no hotel (um hotel onde ele só come sopa e fruta, porque não consegue tragar a comida, entenda-se) está para durar. Ela levou três opções, sendo uma delas, O Exorcista. Tanto pela história, porque gostamos todos de filmes de terror, como pela simplicidade do texto (não se pode dizer que o meu pai seja um ávido leitor de algo que não seja A Bola, portanto Tolstoi ficou de parte).
Então a minha irmã chegou e não parava de lhe "vender" o livro como a melhor opção.
- Pai, tens de ler O Exorcista! Vais adorar!
E notou que o senhor da cama ao lado estava a olhá-la um pouco incomodado. Mas ela continou a falar do livro e de alguns trechos. Eis que...
- A sério, na parte em que...
O senhor da cama ao lado pede licença e sai do quarto. É aí que o meu pai explica:
- Ele é um pastor brasileiro, da Igreja Universal do Reino de Deus.
Ninguém abre os olhos para esta causa. Ninguém cria uma linha de apoio. Ninguém marca blogger anónimos na consignação de solidariedade do IRS. Mas a luta é real.
O blogger anónimo não pode ganhar uns trocos pintando os beiços com a nova gama de maquilhagem ou os óculos de sol da Vitom, porque não pode mostrar a cara.
O blogger anónimo só tira fotos de costas, o que é uma fortuna em calças, que nunca podem estar coçadas no rabo.
O blogger anónimo vive incompleto por não poder usar o filtro de orelhinhas de cão nos Stories, que é revelador de identidade.
O blogger anónimo não pode ir a eventos da Boticário (e não é só porque não foi convidado!).
O blogger anónimo nem pode ser levado para cativeiro no zoológico para preservação da espécie, porque ninguém pagaria para ver uma figura com uma máscara de emoji a tapar a cara.
Face a todas estas dificuldades, muitos optam pelo caminho da fronha a descoberto. Os efeitos são nefastos. E não falo de olhar para pessoas feias, porque hoje em dia toda a gente sabe que não se usam sacos de plástico para comprar fruta e a beleza está no interior. Mas o grau de realidade cai a pique. Toda a gente sabe como é mais fácil a prática de dizer-o-que-vai-na-telha quando ninguém sabe bem quem fala. Os comentadores anónimos que o digam. Há muito hater com nome que também é elefantezinho em loja de cristal, mas os anónimos gostam mesmo de partir a louça até ao último caco.
A vós, resistentes do anonimato na web, um conselho para a vida: mesmo sob a capota, nunca devem escrever nada que o vosso pai ou o vosso chefe não pudessem ler.
O meu pai partiu um pé em circunstâncias que também davam um belo post, mas para efeitos de não parecermos uma família assim tão tonta vou guardar para nós. Estraga-se só uma casa (ou duas) e ficamos por aqui. Já foi há mais de uma semana, mas não tive tempo de partilhar porque a internet estava a arder com Game of Thrones, depois incendiaram mesmo a Catedral de Notre Dame e para não haver mais perigo de combustão, acabaram com a gasolina no país.
O que vos sei dizer é que está de molho no hospital e numa das vezes que o fomos visitar tinha um colega de quarto novo, com uma mão toda ligada e de ferros em riste, meio entorpecido, com a esposa ao lado. Conta-nos ele, em tom normal de conversa, para quem quisesse ouvir:
- Ah, este cortou três dedos de uma mão.
(imaginem neste ponto, que eu e a minha mãe fazemos um ar atrapalhado, porque eles estarão a ouvir)
- E digo mais... - continua o meu pai descontraído - o dedo do meio não se safa!
Moço: Ei, ei, ei! Isto é para os maus cheiros. Esse spray é parati!
(O spray na verdade é um neutralizador de odores, que apesar de se chamar "desportivo" - para sacos de ginásio, sapatilhas oprimidas, etc - também dá para perfumar os tecidos da casa que é o que tenho feito, porque deixa MESMO um cheiro delicioso a maçã verde na divisão que dura de uma forma que o spray da Quanto que usei há uns tempos não ficava. A querida da Carolina que vende a marca Perfum'Ar é que me ofereceu. Vão lá espreitar as coisinhas boas aqui ou aqui. Dá para catrapiscar prendas para o Dia da Mãe!)
A foto de perfil que ainda hoje tenho no blog (a menina do chapéu) é um recorte desta foto de Notre Dame. Não é a Catedral, é um pequeno edifício à esquerda da fachada principal, quase engolido por árvores. Não sei que edifício é, porque o Google Maps não lhe dá nome e nem no site oficial do monumento consigo chegar a uma descrição. Tanto quanto sei, podem ser as latrinas. Não sei se ardeu (em princípio não). Não interessa ao mundo. Interessa para mim que aqui tenho uma das recordações mais bonitas de uma viagem, pelos olhos do Moço. Uma que foi impressa e pendurada nas paredes do nosso quarto.
[Dizem que são estúpidas as pessoas que não alcançam o nível de sofrimento que outros sentem ao ver um monumento histórico a arder. Não creio que seja(m) estúpida(s). A intensidade de uma tragédia, para mim, vive-se na proporção da ligação pessoal que tenho com ela. Portanto talvez até seja cínica, insensível, egoísta. Mas não espero ser julgada porque o incêndio me tocou sem me estragar a noite, da mesma forma que não julgo quem ficou em choque por horas. Lamento sinceramente o incêndio em Notre Dame. Lamento muito mais que as pessoas se insultem (quer os que sofrem pelo monumento, quer os que não sofrem pelo monumento) por não vivermos todos as coisas da mesma maneira.]
A catedral diz-me menos. Aquele edifício pequeno ao lado diz-me mais. Sobre esse não sei nada, porque era pequeno e estava tapado pelas árvores e o Google Maps não lhe dá nome. Devem achar tola a preocupação. Só era histórico para mim.
Dois factos sobre quando fomos à Bélgica: 1) os nossos amigos têm a casa toda quitada de Google e 2) o Moço fez anos e a prenda que lhe levei foi um tiro ao lado.
Quando regressámos, o Moço passava a vida a dizer ao Google Home - que não tínhamos - para apagar a luz ou ligar a TV. Hey, Google turn on the lights. Hey Google turn of the lights.
Portanto achei que, ou estava na hora de o internar, ou trocava a prenda que lhe tinha dado por um sistema mini-Google Home. Escolhi a segunda. E a maquineta é engraçada, confesso. Põe música a pedido. Mais baixo ou mais alto. Conta-me histórias e piadas se lhe pedir. Diz-me onde posso comer um brunch no Porto. Inicia o Netflix na série que peço, mesmo onde a deixei e põe na pausa sem eu mexer uma palha. Faz contas por mim. Converte-me ounces em gramas sem eu ter de mexer com as mãos cheias de farinha no telemóvel. O Moço gosta particularmente do beatbox. Às vezes faz-se de desentendida, mas eu perdoo, porque se eu disser "Hey Google, you're useless" ela responde "Well, I'm still learning." e a pessoa compreende.
Cheguei à conclusão que estamos a avançar a passos largos para aquele momento da vida em que não temos de nos levantar para nada, quando a Bimby me fazia a sopa, enquanto eu via um episódio de Homeland no sofá, que o Google pôs a dar quando pedi. O sonho de qualquer preguiçosa.
Claro que o Google continua a não apagar ou acender a nossa luz, porque para isso é preciso comprar umas lâmpadas xpto que estão ao preço do caviar beluga. Ou menos. Portanto percebo que fiz asneira a trazer isto para casa quando o Moço faz contas à vida porque quer trocar as lâmpadas da sala (três!) e eu digo:
- Se quiseres dizes-me "Hey Maria, apaga a luz" e eu trato disso.
Este livro começa como uma fotografia com a abertura de diafragma no máximo. Sabem quando o fundo da imagem é uma mancha de cores quase indistinta porque talvez não interesse? Foca-se na vida e nas experiências de duas jovens - a Margot e Haruko, que vivem uma amizade improvável, num contexto improvável. E é aos poucos que o fundo da imagem se vai tornando mais nítido e a foto fica completa com a revelação desse contexto. A história não é só sobre elas. A história é sobre a visão delas num mundo que parece de faz-de-conta, mas é bem real. Onde as famílias são postas numa casa de bonecas, mas não é porque alguém está a brincar, é porque alguém está em guerra.
Gosto de conhecer perspetivas novas. E a perspectiva da Segunda Grande Guerra nos Estados Unidos da América, para as famílias originárias do Japão e da Alemanha foi completamente nova para mim.
Tantas vezes acusamos os norte-americanos de não saberem distinguir Paris de Praga - é tudo ali do outro lado do mar, num sítio velho chamado Europa, e afinal somos nós (era eu) que não sabemos tanto sobre o que se passou lá, historicamente.
A história das duas jovens é crucial, próxima, terna e tensa (adorei a revelação final). Mas o que mais gostei foi precisamente de expandir os meus horizontes, com os factos baseados na realidade.