Quando tens de voltar ao mundo real
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O meu traça-se no Apita o Comboio.
Continuaria com esta sensação: tenho pouco tempo para tudo o quer quero viver.
Ali estava ela, na janela do 5ºB, a olhar para o mundo que se estendia à sua frente a partir de Lisboa. Que pequena que era. Que sozinha que estava.
Toda a gente tinha alguém. Estavam de férias com as caras-metades ou aquele grupo de amigos inseparável. Toda a gente tinha um programa mais interessante do que estar à janela naquele domingo ameno. Só ela é que não.
Então tinha tempo para maldizer a sua vida cinzenta. Mesmo que em todos os dias da semana,a todos os que se cruzassem com ela, mostrasse uma montra colorida, em forma de sorriso. O "como estás" responde-se automaticamente com "bem", o "está tudo bem" responde-se automaticamente com "sim". E de resposta correta (mas incompleta) em resposta correta (mas incompleta) se constrói uma fachada pintada de fresco em cima de paredes de cimento áspero.
Não é que não fosse genericamente feliz, que não tivesse amigos do peito, uma família quente de ternura. Mas o que lhes diria? Que não, não estava bem. Que sentia que todos eram mais do que ela, mesmo que ela soubesse que era tanto como os outros? E que importância tinha isso ao pé de quem não tem saúde ou comida suficiente todos os dias?
E era uma pena que estivesse ali sozinha, sabendo que tinha tanto para dar. Podia ser engraçada, espirituosa, inteligente, uma de cada vez ou todas ao mesmo tempo. Era um desperdício que tivesse aquele cabelo sedoso, que entraçava sozinha, e ninguém que o percorresse com os dedos, a acompanhar com uma declaração de amor.
O mundo tão grande e ela tão pequena. Toda a gente acompanhada e ela sozinha. Com um suspiro, fartou-se de estar a janela a pensar no que não tinha e virou-se soltando alguma folhas secas da planta que mantinha no parapeito da janela, sem regar.
No 3ºB estava o Eduardo à janela. Viu as folhas secas a cair à sua frente, sem interromper os seus pensamentos. A sua mágoa por ser o único a estar sozinho no mundo.
No outro lado da rua a Sofia pensava exatamente o mesmo. Como o Tomás, em Viseu. A Catarina, em Évora. O Pierre, em Lyon. A Johanna, na Suécia. O Matthew, em Los Angeles. O Marcos, no Brasil.
Fiquei vacinadíssima. Não quero crianças (nem cupcakes cor-de-rosa) nos próximos quarenta e sete anos.
Que te vem dizer apenas "olá" numa mensagem escrita em qualquer rede social.
E tu sabes que é uma armadilha, porque se quisesse coisa boa, dizia logo ao que vinha, não esperava para ter a certeza que estás a ler e já não podes fugir.
O pirilampo não é mágico.
Arrancar sementinhas daqueles pães minados delas e comer uma a uma. Podia ser pior. Podia dar-me para ler blogs. Ah, espera, também faço isso.
Somos bons para ir para o céu - mesmo quem não tem religião ou tem outra que não a católica tem esta ideia da recompensa divina bem presente. Fala-se nisso, mesmo que a brincar, os filmes retratam a situação e até os desenhos animados pegam na ideia (alguém aqui viu o Todos os Cães Merecem o Céu em pequeno?). Distingues o bem e o mal, praticas o bem quando podes, pedes perdão pelo mal quando falhas e um dia, se tudo correr bem, vais para esse sítio mágico vestir branco e comer queijo Philadelphia.
Um dia destes vi um filme com uma afirmação curiosa. Sobretudo porque era proferida por um padre e não estou a ver um padre a dizer isto, sem ser parte de uma fita de ficção. Não me lembro do nome do filme por mais que me esforce, só sei que era a história de um velho deixado pela mulher e uma jovem viciada em sexo que é abusada e vítima de violência. A dado momento encontram-se na história e o velho (seria o Morgan Freeman?) estende-lhe a mão. Ou melhor, acorrenta-a lá em casa para ela não fugir enquanto tenta que recupere. O amigo dele, padre de profissão, passa lá em casa e ele pede-lhe que converse com a miúda. É aqui.
O padre diz-lhe que ela não deve fazer o bem pela ideia longíqua de um dia ter um buffet à sua disposição no céu. Que deve fazer o bem para obter o céu agora. E pergunta-lhe: quem é o teu céu?
E agora pergunto eu: para que nos esforçamos e levamos a vida o melhor que pudemos e sabemos, não sendo para que um dia os portões do paraíso se escancarem para nós? Qual é o vosso céu? Quem é o vosso céu?
Eu nem gosto de almoçar sozinha, portanto podem adivinhar a minha opinião imediata sobre este assunto. Será uma questão de feitio. Mesmo com um livro por companhia, ou o telemóvel ligado ao mundo na ponta dos dedos, trinco tudo a despachar. Uma refeição que se faz sozinho, alimenta-nos. Uma refeição que se faz acompanhado, satisfaz-nos.
Assim é comigo e com as viagens. A experiência ajusta-se à medida das pessoas com quem a partilho e cresce proporcionalmente em prazer.
Aconteceu ir a Londres a trabalho, sozinha, e ficar mais um par de dias para passear e conhecer a cidade, oportunidade que as horas em reuniões me tinham roubado já umas quantas vezes. Tinha lá alguns conhecidos, amigos de ocasião, que poderia ter desafiado para passear comigo, mas decidi desafiar-me a mim mesma e explorar a cidade ao meu ritmo. Senti-me completa e não houve um minuto em que me parecesse que precisava ali de alguém para aproveitar aquela cidade cinzenta e multicultural. Não precisava, mas queria. Como não preciso de mais ninguém para ser inteira na vida, mas quero ter ao meu lado amigos, família, o meu companheiro para sempre. Porque as caminhadas, literais e metafóricas, se fazem mais ligeiras e felizes quando há passos que acompanham os nossos.
Às vezes, nem precisamos de alguém para continuar a andar, precisamos de alguém com quem parar um pouco.
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