Digam-me se é só comigo que isto se passa. Ter horas ou dias que não partilho com mais ninguém é tão essencial quanto estar rodeada de amigos e família, ou estar com o meu favorito das horas todas que é o Moço.
A solidão forçada é um mal que faz doer, mas não conseguir momento feitos só de nós mesmos, para nada em particular, só para sermos sem mais ninguém, é igualmente penoso. É nesses momentos que refletimos ou, por outro lado, deixamos completamente de refletir, porque não há ninguém a considerar. O que melhor nos aprouver nesse momento da nossa vida em particular. Dançar de cuecas, babar na almofada, ou fazer as mesmas coisas de todos os dias, mas só conosco.
Seja qual for a explicação, preciso disso como de água para beber. E da mesma maneira que me esqueço da segunda, às vezes também me esqueço da primeira.
Cheguei tardíssimo a casa na sexta, muito cansada, e o Moço trouxe-me o jantar numa travessa para comer enquanto víamos um pouco de Netflix (a moda mais recente é Stranger Things, mas hoje já vamos acabar a segunda temporada). Jantei, ele levou a travessa (sim, um anjo), mas reparei que tinha deixado cair uns quantos bagos de arroz em cima das minhas calças.
Maria: Oh! Ajuda-me!
Disse eu na esperança que não houvesse dois favores sem três e ele me trouxesse um guardanapo.
Moço: Não posso...sabes bem que não posso comer hidratos à noite.
Fui no bocadinho de dia que podia, batia a uma da tarde. Honestamente, esperei dar com a porta fechada para almoço e adiar a visita para outra altura. Mas atenderam-me de pronto sorriso e disseram que aguardasse um bocadinho, oferecendo-me uma revista. Felizmente levei um livro, porque um bocadinho foi um bocadão. Apercebi-me que, pelo menos naquele dia, todas as clientes eram senhoras de certa idade (estamos a falar de bengalas para cima) e portanto talvez aquele ritmo pacato de atendimento fosse para elas até um pouco acelerado.
Devia portanto ter percebido que quando eu disse: "quero cortar.Faça o que quiser desde que eu ainda consiga atar o cabelo" a cabeleireira ia estar sedenta de sangue fresco. Disse logo que não ia tirar comprimento (eu achei que esse era o sonho de todas as cabeleireiras, mas aquela já devia sangrar dos olhos a ver cabelos curtos) mas que ia fazer repa. Fosse lá o que fosse, relaxei na cadeira e deixei-me ir.
Quando percebi que repa era franja já era tarde demais. Tenho mesmo de passar a andar com um dicionário regional. Mas enfim, cumpre-se o sonho da minha mãe de me voltar a ver a cara emoldurada, agora sem os óculos de massa da infância. À medida que ela ia fazendo camadas, ia crescendo o meu terror a ouvi-la a dizer coisas como "isto agora usa-se muito" e "também sei fazer mais clássico, mas também sei fazer assim mais radical".
Ia trabalhando e dizendo o quanto já me estava a ficar bem, mesmo inacabado. Que eu até parecia mais nova. Disse-lhe que isso não precisava, que eu já parecia mais nova antes. Ela dava-me 24/25, eu ostento os 31 inteiros. Mesmo assim continuou.
Quando finalmente terminou, eu olhei para mim já de cabelo seco era isto:
Agora as horas já me baixaram o pelo, já estou a ver a coisa com outros olhos (pelo menos a parte dos olhos que a repa não tapa) e sou capaz de até me apegar a este look até à próxima visita. Quando me esquecer do quanto gosto disto de ir ao cabeleireiro.
Dois séculos depois a encomenda voltou à marca (apesar de no site ter indicação finalizada) e contactaram-me para dar uma nova morada! Uff. Falso alarme! Mães, habemus prendas!
Passo este 25 de Abril em reflexão. Até que ponto podemos chamar Liberdade à liberdade que temos? Bem sei que já não estamos fechados naquela caixa de madeira escura, fechada com pregos, onde só vemos o que nos fazem chegar através de um pequeno buraquinho. Que é incomparável com o tempo antes dos cravos vermelhos. Mas não trocámos essa caixa ainda por uma caixa de vidro? De onde conseguimos ver tudo, mas como também nos vêem, somos forçados a fingir as normas e os padrões? Não estamos na era em que há liberdade, mas esperam que a devotemos a crescer (de forma a não ficarmos nem muito magros, nem muito gordos), tirar um curso (de preferência um daqueles que dá boa reputação), casar (de preferência um homem com uma mulher), ter filhos (de preferência um casalinho), almoçar aos Domingos em casa dos pais e dos sogros (alternadamente), baixar a cabeça no trabalho para agradecermos um ordenado e comprarmos um iPhone com uma boa câmara e conexão à Internet de onde podemos partilhar só os sorrisos da nossa vida e nunca as birras e indisposições? Sempre as rosas que nos dão no aniversário e nunca a salsa que deixamos murchar?
E sim, estamos na era em que podemos encomendar um martelo do Amazon com emcomenda Express e partir a filha da mãe da caixa para fazermos o que bem entendermos. Só se tivermos a casca grossa que nos permite fazer ouvidos moucos a todos os que vão olhar e apontar: ai, a filha da Dona Lurdes saiu da caixa, ouviste dizer? É a vergonha dos pais.
Vamos partir a caixa. Ainda há muito trabalho a fazer. (Sem encostar na caixa dos outros, que liberdade também é isso.)
A Bumba dispensa apresentações e com alta probabilidade, vocês, os 3 seguidores do meu blog (olá mãe!), fazem parte dos milhares de seguidores da dita. Mas se há vídeos brilhantes dela, esta é um desses. Não deixem de ver. Prometo que se têm um blog seja de que dimensão for (até mesmo se têm uma rede social pessoal qualquer, só fechada aos conhecidos), vão reconhecer muito destes tipos de comentadores.
Como sempre, muito adiantada, encomendei antes do final de Março as prendas criteriosamente selecionadas para o Dia da Mãe (para a mãe e para a sogra) num site online onde já tinha encomendado isto e aquilo. Sim, o dia da Mãe que aí virá em Maio. Já estabelecemos que sou apressada e que só não planeio com antecedência o que não me deixam, deixando a óbvia margem de manobra para oh sh*t.
Ora tratando-se de quase fim de Abril, lembro-me (só agora que a cabeça não dá para tudo) que nunca mais recebi a encomenda. Vou ao site e confirmo que já foi entregue há semanas...na minha morada de Lisboa - onde não moro vai para um ano.
Portanto alguém na sua vidinha recebeu em casa com o MEU nome (e não vou insistir, mas tenho bastante certeza que a nota de encomenda até leva nº de telefone) um leque de artigos que fazendo as contas dava-me para jantar fora duas vezes assim a lambuzar-me toda com o Moço num sítio bom, porque, caramba, tinha mesmo pensado bem no que dar às mulheres da nossa vida. Não contactou a marca, não devolveu aos correios. Fez que se tinha esquecido ou que achou que era prenda do amigo secreto de Natal a chegar em Abril?
Eu sei que a tolice foi minha, que assumi simplesmente que já teria corrigido a morada naquele site e devia ter tomado atenção. Mas sinto que foi feito um daqueles testes de deixar cair a carteira num jardim a ver o que as pessoas fazem e os novos habitantes da minha antiga casa chumbaram. Resta-me esperar que aquela racha que havia no quarto e o tornava húmido no Inverno lhes tenha dado tosse. Gangsters.
O dono do Porsche saiu do carro e tropeçou no degrau da garagem, bamboleando para se equilibrar. Ri-me interiormente como nunca fiz pelo tropeção de um dono de Renault Clio.