Atirei o pau ao gato
A Carolina veio a cantarolar da escola. Que canção é essa, filha? perguntei-lhe eu. E ela repetiu:
"Não atires o pau ao gato-to-to, porque isso-so não se faz-faz-faz...minha mãe-mãe-mãe, ensinou-me-me, a gostar, a gostar dos animais! MIAAAUUU!!"
Já não se atira o pau ao gato.
Pedi-lhe que se chegasse ao pé de mim e fiz-lhe uma trança no cabelo. Perguntei-lhe se tinha fome. Nunca tem fome. Desde que o irmão perdeu o apetite ela também. Tão pequena. Sentei-a a ver televisão com uma taça de cereais.
Preparei o tabuleiro com o lanche para levar ao Manel e bati ao de leve na porta do quarto. Às vezes prefiro que ele não oiça, para não me mandar embora antes de eu ter oportunidade de entrar. Está com o livro aberto na mesma página. Sempre na mesma página. Quer que eu acredite que lê.
Deixo-lhe o tabuleiro ao lado. Nenhuma palavra. Passo o polegar ao de leve na sua bochecha encarnada. Reparo que o cotovelo está menos inchado mas não lhe toco mais. Pego num livro, sento-me aos pés da cama e espero que ele coma qualquer coisa. Sei que ele o fará para não me preocupar ainda mais. Mas só se eu estiver ali.
Ele deixa de fingir que lê e eu começo a fingir que leio. Mas pelo canto do olho estou antes a vê-lo pegar na comida aos poucos e mastigar. Corta a sandes nas mãos e depois leva à boca. Já não geme ao trincar. Eu já não choro ao ouvi-lo gemer.
Tenho de me lembrar de virar a página. Só de vez em quando.
Quando recebi aquela chamada para o ir buscar - ao hospital não à escola - num segundo tudo fez sentido. A recusa dele em voltar para as aulas a cada Setembro. Neste último em especial. O grupo de rapazes (e não, não eram só rapazes) que o fazia desviar-se para o outro lado do passeio quando o deixava de carro do lado certo da escola. Não era "coisa de criança", como dizia a mim mesma.
Vira a página.
Serei má mãe por não reparado. Já pensei nisso muitas vezes. Não me vou enganar, é tudo o que penso.
Também é o que os outros pensam. Também é o que o Carlos pensa. Eu é que o ia levar à escola. Eu é que o ajudava a preparar-se de manhã e lhe ouvia os protestos. Eu é que devia saber.
Mas como poderia eu saber, que num mundo em que já nem se atira o pau ao gato, as crianças seria violentas a este ponto umas com as outras? Não foi por isso que mudaram a canção?
Já nem se atira o pau ao gato.
Vira a página.