As tradições (as nossas, como as do mundo) servem para nos emprestar um sentimento de conforto. Com tanta instabilidade, mudança, evolução e marcha-atrás da vida, faz-nos falta saber que há coisas que não mudam. Ou que não mudam enquanto isso depender de nós.
Há muitos anos - e está gravado numa cassete VHS - eu, a minha irmã e as minhas "primas do Natal" gritávamos aos saltinhos é quase meia-noite, é quase-meianoite com a aproximação pintada de adrenalina da hora décima segunda, qundo o galo canta a missa e nós abrimos as prendas. Tenho trinta anos e já não podemos, porque as coisas mudam, lá está, passar o Natal com as primas. Mas continuamos a esperar pela meia-noite, como se crianças houvesse, para abrir as prendas. E cantamos baixinho, cada uma só para si, mas em coro se virmos bem: é quase meia-noite, é quase meia-noite.
Dos tempos em que ir a casamentos, era mesmo só ir a casamentos. Os pais é que pagavam a visita e de resto era vestir qualquer coisa gira, comer muito camarão e dançar (desconto para aturar o tio maluco que todas as famílias têm).
Hoje em dia ir a um casamento é tudo isso (mas pagamos nós a visita e com sorte temos de ir vestidas de damas de horror) e...organizar despedidas de solteiras (guardando também o orçamento para tal), ensaiar danças, cantorias, flash mobs, criar vídeos engraçados e um PPT de fotos de infância, não esquecer de fazer a cama dos noivos à espanhola, pendurar latinhas no carro...
As saudades que eu tenho de quando ir a um casamento não dava trabalho.
[E depois vejo o brilhinho nos olhos dos nossos amigos-noivos e vale tudo a pena, mas ainda assim...sou uma preguiçosa. (In)felizmente, uma preguiçosa que não consegue ficar quieta e não pôr o bedelho ou organizar mesmo tudo.]
Sou totalmente contra a crueldade animal. Embora não seja uma ativista dos direitos dos animais e até ache que ainda temos muitas causas (des)humanas para gritar antes de pensar em manifestações anti-tourada ou gatos a subirem paus ao toque de fogo, causa-me náuseas saber que tais práticas existam na sociedade sob a fachada da tradição (também era "tradição" que as mulheres não votassem).
Mas há tradições com um cariz mais subtil e que não aleijam tanto (pelo menos põem o animal em condições de igualdade) e que não me chocam. É o caso das "vacadas" - não sei se é este o termo que usam em todo o lado, mas é o termo que usam pela minha zona. É uma espécie de tourada, versão light (não faz mal à saúde). Basicamente lançam umas vacas ou uns touros mais tenros para a arena improvisada e durante algum tempo as pessoas são convidadas a fazer frente ao bicho (nada mais que uma pega, não há objetos afiados envolvidos, até os cornos dos bichos são protegidos).
Assisti a parcos minutos de uma dessas vacadas abertas ao público este fim-de-semana. Basicamente uma mão cheia de catraios pseudo-corajosos entram e saem da arena a correr assim que o animal se vira para eles. E muito de quando em vez acontece que conseguem mesmo agarrar o animal. A ideia é agarrar e largar - só provarem que são homenzinhos e estão cheios de testosterona para a seguir poderem pagar um gelado à miúda mais gira da aldeia com o peito feito. Vi mais catraios no chão do que a conseguirem mostrar alguma valentia frente ao animal. Mas houve um momento em que caiu a proteção de um dos cornos do touro e o tipo mais experiente foi organizar a pega. Lá agarrou o touro para ajeitar a fatiota-de-corno, com a ajuda de alguns dos badamecos que para lá andavam a tentar a sorte.
E de facto a tradição já não é o que era. A vacada ficou suspensa durante vários minutos. Porquê? Porque todos quiseram, à vez, tirar selfies com o touro...Graças a Deus ele não se irritou. Ou teriam conhecido o verdadeiro selfie stick.