Por acaso estava convencida que íamos passar. Às vezes, quando mais difícil o adversário, mais nos empenhamos.
Descemos a Leiria a tempo de apanhar a minha irmã antes de ir para o trabalho e trocar um gelado por dois dedos de conversa. De caminho, apanhámos à minha avó para se juntar a nós e matar saudades de um crepe. Rimos, conversámos e comprámos o lanche para acompanhar a Seleção. Rumámos à casa que já não é minha (mas há-de ser sempre) e gritámos golo com o meu pai. A minha avó ainda estava e falava do Arnaldo e do Messias (AKA Ronaldo e Messi), enquanto descascámos camarão. A minha mãe trabalhou até depois do jogo, mas esperámos por ela. Trouxe-nos uma sopa da pedra da festa onde estava (a trabalhar, insiste ela). As mães sabem sempre como nos confortar e eu adoro conforto em forma de sopa da pedra.
Não passámos. O sonho do Mundial acabou por este ano. Uma pena. Mas não consegui ficar triste. Foi um dia fantástico.
Parece que a culpa não é só o sentimento que assola as mães e os católicos em geral. É, aliás, o maior problema que tenho desde que fiz esta mudança geográfica. A culpa de não chegar a todos a todo o momento. Ou a culpa de optar por mim, nas ocasiões em que o faço.
Nos dois fins-de-semana anteriores tínhamos acorrido a duas localizações diferentes, todas a mais de 100km da nossa base, a propósito de aniversários (para estar com família, como também fazemos com regularidade, mesmo quando não há bolos com velas à mistura). Neste, não fomos a lado nenhum, mesmo tendo dois convites para aniversários de mini-pessoas que adoramos, da família e de amigos que são como família. Não fomos porque o Moço trabalhava no fim-de-semana, senão certamente a culpa se teria sobreposto à nossa necessidade de descansar, de estar em casa, de fazer nada por ninguém senão por nós. Sendo que por nós também estaríamos sempre rodeados de todas essas pessoas que fazem parte de quem somos, mas vocês entendem.
Porque ele estava a trabalhar e eu decidi adiar os meus afazeres para mais logo, fui até à praia no Sábado de manhã. Estava um dia lindo em Espinho. Calor, sem pinga de vento, até a água tinha temperaturas convidativas. Pensei como seria tão bom se o Moço estivesse ali para aproveitar comigo aquele dia maravilhoso. Depois pensei melhor. Se ele não estivesse a trabalhar também eu não estaria ali. Estaríamos os dois de pé na estrada. Porque não teríamos desculpa, portanto se não fossemos haveria lugar a culpa.
Quando não há ocasiões especiais conseguimos selecionar melhor os nossos momentos e a regularidade das nossas viagens. Mas quando as há (e são tantas vezes, em pelo menos 3 cidades distantes) não conseguimos evitar fazer o que está ao nosso alcance para não faltar. Por causa da culpa.
E é só idiota da nossa parte. Nós também somos prioridade, como às vezes consigo racionalizar, mas não sempre. Tento lembrar-me: os quilómetros são iguais em percurso inverso e também não culpo quem não arranjou a disponibilidade para vir até à nova cidade a que chamamos de casa ou não pode fazer mais vezes o mesmo caminho que nós fazemos vezes sem conta de sorriso nos lábios.
Mas a culpa, essa filha-da-mãe, tem-nos feito exagerar nas viagens e recusar alguma calma, bem, necessária. A culpa usa a imagem das pessoas de quem gostamos na nossa cabeça e põe-lhes uma expressão de desilusão. A culpa tem de ir para longe, por uma vez, no nosso lugar.
Nós temos uma veia de ciganos (e família "da boua" espalhada por alguns cantos do país) pelo que quando as pessoas aproveitam uns dias de fim-de-semana prolongado para fazer uma escapadinha, nós aproveitamos para vaguear por três distritos para distribuir amêndoas e beijinhos (e ainda ficou a faltar a nossa Lisboa, mais os amigos do coração que por lá andam).
O meu pai, sempre preocupado por andarmos tanto de roda na estrada (sim, é verdade que cansa) estava a avisar para fazermos devagar o regresso. E eu:
- Sim, pai. Não te preocupes. Já fazemos este caminho de olhos fechados.
A propósito da Páscoa, a minha avó comprou daqueles doces com forma de fruta para o Moço. Porque ele faz dieta...fruta...Legitimamente convencida que eram a alternativa saudável às amêndoas.
A manta do cão pertence a qualquer canto do tapete, a cair do sofá. Os chinelos do meu pai moram na casa-de-banho, se ele não está. A escova de cabelo da minha mãe faz sempre caminho até ao espelho grande do hall de entrada. Na lareira, quem olhar de esguelha vê os autocolantes das batatas fritas colados pela minha irmã na parte mais inclinada da pedra.
Sou obcecada em ter as coisas no seu devido lugar, ou pelo menos reunidas na sua desorganização. Mas há sítios em que as coisas pertencem fora da gaveta óbvia. À primeira podem parecer desarrumadas, mas estão só no sítio onde todos as conhecemos e procuramos. A este sítio onde sabemos sempre das coisas deslocadas, chama-se casa.