Viver por uma lente.
É uma das doenças do século. Milhões de pessoas todos os dias (biliões) vivem através de uma lente. Não falo de miopia, astigmatismo e casos de cataratas avançadas. Falo do vício da câmara, do smartphone, do iPad em punho para fotografar ou filmar...do viver por um ecrã, por uma lente. Viver com um intermediário, em vez de viver diretamente.
No outro dia fui a um café-bar. Fui em busca de waffle com gelado, ou não fosse eu, mas um grupo animado de mulheres pediu uns shots coloridos e flamejantes. Assim que chegaram à mesa...brindaram?...beberam?...nada disso! Sacaram dos telemóveis. Instagram primeiro, momento depois. Perderam o brinde porque foram bebendo uma a uma para a câmara, com a assistência das amigas. A diversão estava em registar, em mostrar a outros que não estivessem lá a grande loucura que fizeram juntas - só que não. Perderam o momento, beberam de um trago e fizeram cara feia, uma de cada vez, desencontradas.
Assim é em concertos, em viagens. As pessoas vêem a interpretação da sua música favorita com uma câmara pelo meio. A olhar para o ecrã, para se certificarem que o enquadramento está bom até ao fim. E quando chegam ao fim, esqueceram-se de a ver diretamente. De sentir sem filtros.
E deslocamo-nos para obter a foto perfeita da Torre Eiffel, quando há tantas fotos de cor e enquadramento perfeito da Torre Eiffel num browser próximo de si. Quando nos devíamos deslocar para fazer a melhor captação possível...com o olhar. Registar as cores irrepetíveis de uma paisagem, inimitáveis por qualquer meio tecnológico, por mais FHD 3D XPTO que seja, através dos nossos olhos.
Depois preocupamo-nos porque ao meio da tarde daquela viagem já estamos sem bateria na máquina ou no telemóvel, quando devíamos estar preocupados que isso signifique que passámos demasiado tempo a fazer click e muito menos a ter experiências únicas, de mãos livres. O selfie stick para o diabo. Os outros não têm de ver que estivemos ali. Nós próprios não precisamos de nos lembrar que estivemos ali, se não estivemos por mais nada senão captar para recordar, sem viver.
Equilíbrio: procura-se desesperadamente. "Consumir com moderação" deviam as máquinas digitais ter como aviso na embalagem. Lá nisso o bom do rolo, a gastar-se depressa, era nosso amigo.
Eu também gosto de fotografias: as da praxe, as únicas, as das caras bonitas e feias, as que provam que estive lá, fiz aquilo e com quem. Mas espero não me esquecer nunca de experimentar o que está foto, se não em vez de, ao menos antes de fotografar.