O meu pai foi à mata apanhar medronhos. Não sei se é um conceito estranho para pessoal das cidades grandes, mas o pessoal das terras vai à mata buscar coisas. Levou o cãozito da família, um salsicha meets vira-lata que já não é cachorro mas tem energia de peta-zeta embutida em cada pelo e adora andar a passear e saltitar (e fazer asneiras em geral).
A dado momento o meu pai, que andava entretido na sua tarefa, reparou que o cão já não andava a correr que nem um parolo de árvore em arbusto. Estava muito sossegado a roer um medronho que estaria caído no chão. Ora, o medronho é uma fruta. Mas é uma fruta com teor alcoólico. Pelo que quando o meu pai o chamou e ele o olhou de volta com os olhos muito pequeninos, como se o tentasse focar, o meu pai percebeu que o cão tinha comido muito mais que um medronho.
Daí para a frente foi o festival típico de um fim de noite no Cais do Sodré. Uivava, como nunca se tinha ouvido, como um bêbado a cantar o fado. Andava torcido, como o Vasco Santana menos o candeeiro. O meu pai levou-o ao carro, onde ele aproveitou para dar um forro novo aos estofos (se é que me entendem). E quando chegaram a casa, o meu pai jura que só visto, nunca contado: foi tal e qual como um beberolas a chegar tarde a casa. Cambaleou da porta diretamente à sua cama e tombou para ressacar.
Não se preocupem, o cãozito está bem. Foi um acidente sem mais consequências que a lavagem do carro. Ah, e agora o meu pai mantém a garrafeira fechada à chave.
Se conduzir, não beba. Se apanhar medronhos, não leve o seu cão.
Não existe. Portanto, foi complicado o meu pai arranjar a melhor forma de dizer à minha irmã que o nosso cãozinho tinha morrido (a minha mãe diz sempre "falecido", como que a suavizar a coisa).
Reza a lenda que na tarde em que ele a veio buscar a Lisboa e lhe tentou dar a má notícia, ela falou do cão como nunca antes.
Que saudades tenho dele. Estou ansiosa para chegar a casa e fazer-lhe festinhas Podemos comprar uma bola saltitona para brincar com o K. que a mãe escondeu-as todas?
Eu teria sugerido uma abordagem do tipo anedótico: A tua família morreu toda. Estava a brincar! Foi só o teu cão! Hahaha.
Mas o meu pai foi um pouco mais brando. Em todo o caso ainda estava a rapariga num pranto, já em casa, a tentar digerir a notícia, quando para a acalmar os meus pais unem esforços numa conversa deste tipo:
Não fiques assim. Estas coisas fazem parte da vida. Um dia vamos todos morrer e temos de saber lidar com isso. A avó vai morrer, nós vamos morrer...
Conseguiram acalmá-la? Claro que não. Antes apoquentá-la em dobro agora com a perspetiva que toda a sua família morreria e que, seguindo a ordem natural das coisas, ela (a mai-nova) estaria cá para assistir a tudo, com camarote para mortes de entes queridos em cadeia. Conclusão: não há boas maneiras de se dar más notícias. Mas evitar falar em desgraças futuras talvez seja aconselhável.
Não são os pêlos pela casa. Ou o espaço que o bicho ocupa com as suas tralhas, camas, brinquedos. Nem o barulho que faz a ladrar para os outros cães em época de cio. Não é a chatice de ter de se levar à rua. Mesmo à chuva. Mesmo às sete da manhã. Nem ter de gastar dinheiro em vacinas e desparasitação. Ou na ração XPTO que é a única que o menino gosta. Nem vê-lo a pedir por favor com olhinhos meigos quando estamos a roer tremoços e ele também quer. Rondar a mesa à hora das refeições quando está a avó que ele sabe que lhe dá sempre um bocadinho de carne do prato. Não é ele não parar quieto e estar sempre a querer brincar. Nem roer os chinelos e os sapatos. Não é que faça chichi no puff da sala enquanto ainda está ser treinado para ir à rua. Nem que corra atrás das bicicletas feito maluco. Que traga lixo para casa da rua, orgulhoso, entre os dentes. Que traga pulgas e carraças para casa por ter rebolado nas ervas secas que depois temos de ter paciência a tirar. Não é que espalhe as cinzas da fogueira apagada e tente até comê-las. Não é que não responda ao NÃO que pronunciamos firmes tantas vezes como gostaríamos e logo desde pequeno. Nem que esteja sempre a trazer de volta o brinquedo que apita para atirarmos uma e outra vez. Nem que esteja sempre a subir para o sofá ou para a cama - contra a nossa indicação, mas para nossa delícia.
É que - não sendo como as velhacas das tartarugas - eles têm uma vida mais curta que a nossa. E a dor de os perder é diretamente proporcional a todas as chatices (leia-se carinho) que nos prestaram.